sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

A essência da solidão

* Por Cecília França

Uma pessoa sem ninguém. Defino-me assim agora, prestes a completar meus noventa anos. Sem alguém para dividir as lamúrias, risos, a cama quebrada, as bebidas do bar empoeirado no canto da sala. Hoje, véspera desse meu aniversário, que bem poderia ser o último, acordei assim, emotivo.

O reflexo dos ralos fios de cabelo grisalhos no espelho me faz sentir pena de mim, da velhice que ocupa meus poros enrugados. Sentado junto a essa mesa de madeira gasta, olhando pela janela através da cortina de voal, sinto, como nunca antes, o ar me encher os pulmões cansados. Enquanto escrevo as linhas desse texto, meus olhos querem verter lágrimas, mas não deixo. Qual foi a última vez em que isso aconteceu? Nem me lembro mais, talvez com a prematura morte de meus pais.

Não penso no vácuo de minha vida pela primeira vez, mas nunca antes havia me doído no peito. Por que essa consternação, justo hoje, nesse momento em que se aproxima meu último dia? Talvez aquele Ser de quem sempre duvidei da existência queira me provar que nem mesmo eu passarei pela vida sem sentir os males que provoquei. Sem, de certa forma, pagar por eles.

Vocês podem pensar que um dia de angústia não representa nada em vista dos restantes que vivi à custa do padecimento dos outros. Mas quem quer que seja que tenha me imprimido tal dor, soube dar a quantidade certa e dosar arrependimento, solidão e pitadas de escárnio. Escárnio por mim mesmo. Sou um bufão que não soube aproveitar a vida e virou objeto de troça dos vizinhos e antigos funcionários.

Hoje, os olhares que eles me dirigem são mais ferinos, doloridos; alguns, piedosos. Estes eu até já havia reparado, mas pouco me importavam. Pensava que a pena deveria partir de mim, afinal, tinha dinheiro. Ah, ele... tentação da minha vida, motivo da minha jornada. Deu-me poder, luxo, fiéis companheiros e até uma família. Sim, se não fosse o dinheiro, Vânia nem teria me olhado. Mas nem ela suportou.

Ai, essa dor que não me larga. Florência! Só ela, negra batuta, continua aqui, quase tão velha quanto eu. Ainda me traz o café na cama e lê o jornal para os meus ouvidos cansados. Escuta meus comentários sobre as notícias reles que publicam. Os bons tempos da imprensa acabaram, Florência. Onde foram parar os jornalistas de verdade?

Ela apenas me olha, fecha as páginas e sai. Sabe ler, mas não compreender. Poderia me questionar, propiciar uma conversa. Ah, como eu queria isso hoje. Mas, como todos, quer apenas se afastar e não dá trela para bate-papo. Está lá, mas não a sinto. Azar o meu. (Ontem pensava que o azar era dela).

Devo morrer amanhã.


* Jornalista

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