quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Uma noite em São José

* Por Marco Albertim

Numa noite sem o repique do frevo, nem bêbados andando a custo, Custódio Penaforte saiu de sua casa, na rua da Regeneração, em Água Fria. Importante mencionar o domicílio porque, de um lado, avizinhava com o Caldinho de Penaforte, bodegueiro e irmão de Custódio.

Os dois, tão afins quanto consanguíneos, rivalizavam na crença em caiporismos. Do outro lado de sua casa, no quarto nos fundos do quintal, tinha assento um terreiro onde o culto a orixás diversos se dava ruidoso, com cânticos e batuques. Na véspera, uma quinta-feira, conforme ele, um dia promitente, carregado de bons sustos, fora avisado pelo pai de santo incorporando um exu de fala mansa, que não tivesse medo de encruzilhadas, mesmo sob o bre u de uma sexta-feira treze.

Não era sexta-feira santa, tampouco a sexta gorda da semana pré-, mas uma sexta de usufruto são, em que os passos dos transeuntes não se chocam e dão a impressão de que patinam sem temor do desconhecido. Assim, Custódio Penaforte creu-se enfatiotado na melhor camisa de linho, mangas compridas, mesma cor cinzenta clara da calça. Com a mesma indumentária, seguira o andor da última Procissão dos Passos, na Dantas Barreto; depois na rua 1º de Março, cuja estreiteza permite a apreciação muda de quem não se move das calçadas.
- Custódio - advertira o irmão -, hoje não tem prece na Igreja do Carmo, nem batuque de olorum. Vai sair sem proteção?
- Estou levando o escapulário e a confiança nos bons ofícios de exu.

Inda que com excesso de confiança, conveio que mirar a Igreja do Terço em frente à casa de Mãe Badia, seria o mesmo que conferir-se como proprietário do cetro de ogum. Custódio fora ferramenteiro de fábrica metalúrgica, habilitara-se no ofício tendo em conta a proteção do orixá a quem manipula metais ferrosos ou não. Não se ajoelhou na calçada da igreja, só sentiu o prazer tátil de alisar as curvas do madeirame da porta principal. Depois, voltou-se para o pátio, ouvindo longínquo o toque dos maracatus tão familiar a seus ouvidos suburbanos. Voltou-se e seguiu para a casa de Mãe Badia. A velha pardacenta recebeu-o sem levantar-se da poltrona de assento plástico, sem curva nos pés para sentir o balanço dos anos.
- Meu filho! - acolheu-o Mãe Badia.

Se a velha ialorixá confirmasse os bons agouros de Pai Augusto, em Água Fria, Custódio Penaforte crer-se-ia certo de que os três - Pai Augusto, Mãe Badia e ele - sentariam juntos na morada sem janelas nem paredes do orixá seu protetor.  No entanto...
- Não é uma noite própria para quem se acredita com a fortuna dos orixás. Há espíritos zombeteiros nesta sexta-feira. Em toda esquina tem um. Exus com asas de anjo.

Custódio Penaforte quis crer nos agouros da velha. A fronte encarquilhada de Badia, a testa franzida, o queixo descido com um lombo carnoso na ponta, tudo em Mãe Badia era um sumo com cheiro e cor de sentença. Ora, com oitenta e um anos, Mãe Badia ostentava saber, entendimento, por isso mesmo corria o risco de não acertar em suas previsões; por causa da altura da idade longeva.

Penaforte despediu-se beijando a mão da velha, ergueu-a e colou-a junto a sua testa submissa.

Às oito da noite, o Pátio de São Pedro encheu-se de um alarido manso. A igreja, com as portas abertas, era indício de que as quatro laterais do pátio também se ungiam dos benefícios vindos das luzes dos lustres na abóbada. O coral de vozes arrastadas, de velhas carolas, as notas do órgão barroco soando indiferentes ao bulício mundano; nada, nenhum indício de que a noite urdia embuste.

Custódio Penaforte nunca se casara. O irmão, casado há quarenta anos, acomodara-se na casa nos fundos da bodega; com a mulher, responsável pela receita do caldinho de feijão, e dois filhos ainda solteiros, inda que cada um com profissão e trabalho certos. Penaforte não vira o tempo passar da janela de sua casa, aprendera a distinguir nas mulheres do bairro de São José, a parelha adequada para uma noite farta de sexo sem queixumes.

Às dez horas, as portas da igreja deram as costas ao bulício dos bares. Penaforte, àquela altura, tinha uma parceira de seu lado. Escolhera-a depois de sorver uns tragos de conhaque. Sugeriu, a parelha, que fossem para um quarto de hospedaria, em frente ao Forte das Cinco Pontas.

Na Dantas Barreto, meio do percurso, as luzes dos postes são escassas. Penaforte antecipou-se na bolinagem dos peitos da mulher. Ela riu cúmplice e logo afastou-se dele e foi para o canto da parede de um estabelecimento fechado. Três moleques de bermuda e sandálias nos pés magros levantaram-se de um assento na beira da calçada. Não foi difícil ter o domínio da magreza de Penaforte, que segurou-se no cordão do escapulário de Nossa Senhora do Carmo.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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