domingo, 17 de novembro de 2013

Pantufas imperiais como passaporte

*Por Anna Lee

  
Não sei qual era a estação do ano, não devia ser inverno porque me lembro perfeitamente de que o ventinho frio que soprava mais agradava do que incomodava. E, em Petrópolis, quando faz frio, faz muito frio mesmo. De rachar as mãos e fazer sangrar. Não era esse o caso.

Também não era verão. O ventinho frio não tinha efeito de ar-condicionado. Os ares-condicionados são assim: levam do inferno ao paraíso em questão de segundos, no entanto, uma vez cumprida a missão de acabar com o calor, tornam-se inconvenientes. Provocam um frio que gela os ossos, uma sensação que, pelo menos para mim, é extremamente desagradável.

Nada era desagradável naquele dia.  Portanto, acabo de me dar conta que, como efeito de lembrança, pouco importa qual era a estação. O céu em seu azul intenso de nenhuma nuvem continha em si tudo que era bom em cada época do ano e nada de ruim. Ainda sinto o vento bater sem doer no rosto que eu lhe oferecia pela janela aberta do carro, enquanto subíamos a serra. Com longos dedos de ar, penteava meu cabelo para trás.

O Cony estava indo a Correas, que é distrito de Petrópolis, no sítio em que passava férias, quando era seminarista. O Instituto Moreira Salles preparava a edição dos Cadernos de Literatura Brasileira sobre ele e quis fotografá-lo lá. Convidou-me para acompanhá-lo, junto com o fotógrafo e o motorista. Era uma oportunidade para, na volta, visitarmos o Museu Imperial e fazer uma pesquisa de campo para o livro infanto-juvenil no qual estávamos trabalhando: O mistério da coroa imperial. Faríamos uma espécie de reconhecimento de campo, além de anotações sobre a coroa. A exata interseção entre realidade e ficção.

Subimos as escadas de acesso ao museu, um casarão antigo e solene que, na época de Dom Pedro II, serviu de residência de verão à família imperial. Quando chegamos ao topo, os dois porteiros nos obrigaram a parar no hall. Ajoelhados em cada lado da porta, colocaram pantufas nos pés de cada um, meu e do Cony – o fotógrafo e o motorista ficaram nos aguardando do lado de fora. Os enormes chinelões, macios e ridículos, nos serviram de passaporte para um mundo que era real porque estava ao alcance das mãos e dos pés e era também ficcional porque era feito da nossa imaginação.

Incapazes de caminhar com as pantufas, começamos a deslizar pelo chão que era um vasto espelho de madeira. Aquele tão intenso brilho tinha uma explicação: os pés funcionavam como um escovão, dando mais lustro ao assoalho.

Passamos rapidamente por aposentos repletos dos mais diversos objetos e mobiliário que outrora serviram à monarquia brasileira. Nada que fosse capaz de nos desviar do caminho. Tínhamos pressa em atingir nosso objetivo que era um só: a salinha pequena e escura que abrigava, solitária, dentro de uma vitrine iluminada por dentro, a coroa imperial, reluzente em suas pedrarias.

Não era a primeira vez que víamos a coroa. Mas, desta vez, ela parecia diferente. Fomos arrebatados pela fonte de luz, fantástica como um pedaço de sonho, com a qual nos deparamos. Sem conseguir desviar os olhos, ficamos ali parados por um tempo que, até hoje, não sei se foi de minutos ou horas.

Somente saí de meu transe quando o Cony disse: Como vamos fazer para tirar essa jóia daqui sem que ninguém perceba? – propondo uma discussão sobre como o bandido da nossa história conseguiria roubar a coroa, seu objeto de desejo.

A partir daí, travamos uma longa conversa, durante um outro bocado de tempo. Arquitetamos um plano elaboradíssimo que envolvia comparsas, troca da coroa verdadeira por uma cópia, pistas falsas, ações cronometradas, desligamento dos alarmes e muito mais.

No meio de suas muitas conjecturas, o Cony lembrou: Não pode deixar de anotar a descrição da jóia, isso é fundamental: um papel colado por dentro da vitrine informava que a coroa foi montada com quase dois quilos de ouro maciço, 639 brilhantes, 77 pérolas...

Transcrevi todos os detalhes num bloquinho de repórter que sempre freqüenta minha bolsa, estando eu trabalhando ou não. Quando terminei e já ia guardá-lo, uma voz grave e decidida ecoou pela sala: Escutei tudo que conversaram, pois saibam que as dependências do museu têm câmeras e tudo que se passa aqui fica registrado. Dificilmente, um ladrão escapará ileso.

Os dois, eu e o Cony, num movimento sincronizado, viramos a cabeça para trás, para o canto direito da sala, de onde partira a voz. Estava lá, ereto e imóvel, um guarda num uniforme preto, desaparecido na escuridão do ambiente cujo único ponto de luz era a coroa imperial, que roubava todas as atenções.

Olhamos um para o outro, primeiro achando graça na situação e, depois, sem encontrarmos respaldo no guarda, reconhecendo que tínhamos nos metido numa encrenca. Passamos, então, a explicar que éramos escritores, que estávamos colhendo material para um livro, que jamais seríamos capazes de roubar um alfinete que fosse, muito menos uma coroa, ainda mais aquela, imperial! Nem saberíamos o que fazer com ela.

Engajado no seu papel de responsável pela jóia, o guarda não nos dava ouvidos. Insistia, insistia, insistia em dizer que ninguém nunca conseguiria cometer tal crime, deixando a entender que se tratava de uma questão de honra para ele, de vida ou de morte. Até podia ser que estivéssemos trabalhando mesmo, que o roubo que elaboramos, passo por passo, diante dele fosse apenas uma peça de ficção, mas não poderia nos liberar sem antes comunicar ao chefe o acontecido.

Acionou o administrador do museu, que não demorou a se apresentar. Enquanto repetíamos as explicações que tínhamos dado para o guarda, ele, polidamente, nos conduzia de volta à porta principal. Uma vez ou outra, nos interrompia para lembrar que o esquema de segurança do museu era inviolável. Não dava para saber se o homem acreditava em nossa história ou se nos julgava loucos, com os quais não queria qualquer envolvimento.

Quando já estávamos do lado de fora e já tínhamos devolvido as pantufas, ele acenou e disse: Vou ficar feliz em receber um exemplar de O mistério da coroa imperial! E depois de constatar que estávamos dentro do carro, acenou mais uma vez: Não esqueçam de autografar!

Na descida da serra, ao olhar o horizonte que, agora, era uma faixa de sangue, vi as primeiras estrelas da noite se acenderem – uma fonte infinita de pedacinhos luminosos, de onde alguém um dia roubou pequenas amostras para colar na coroa imperial.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.


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