sábado, 23 de novembro de 2013

Obsessão pelo tempo

O poeta, geralmente, é estereotipado pelos que não têm essa aptidão estética. Há quem confunda arte e vida e entenda que o artista deva refletir, obrigatoriamente, em sua obra, a maneira que vive. Às vezes, acontece. Mas não é regra. Boa parte das pessoas relaciona excentricidade com talento poético. Ou seja, entende que o poeta, “necessariamente”, tem que ser, ou é, um excêntrico por excelência. E que, se não for... está em gênero errado. A coisa, porém, não é bem assim. Está claro que isso não passa de estereótipo que, de tanto ser adotado, vai se consolidando e se transformando quase em norma.

Conheço, e não somente isso, convivo com inúmeros poetas absolutamente normais por qualquer padrão de normalidade que se adote. Deles apenas se sabe da vocação que têm lendo seus poemas. Trajam-se como qualquer sujeito comum, cuidam da aparência como a maioria de nós, comportam-se sem manifestar a mínima excentricidade etc.etc.etc. Em suma, são “gente como a gente”.Nem por isso, seus poemas são convencionais. Não necessariamente. A maioria esbanja criatividade e, sobretudo, originalidade. Uma coisa não está, pois, necessariamente, ligada à outra. Pode até estar, mas casualmente. Não se trata de norma.

Há poetas, porém, que justificam o estereótipo de excêntricos. É o caso, por exemplo, do espanhol Gabriel Ferrater e Soler. Sua excentricidade, explico, não estava na maneira de se trajar, de falar ou de se comportar. Nesse aspecto, era normalíssimo. Estava na obsessão pelo tempo. Não, como no meu caso, o elegendo como tema preferencial dos seus textos. Nada disso. Mas na forma de encará-lo. Isso, para mim, ficou claro somente após sua morte. Ferrater declarou, certa feita, ao um grupo de amigos, que não viveria mais do que meio século. Não foi levado a sério, claro. Afinal, estava saudável, vinha fazendo sucesso com seus livros e tinha uma vida intelectual intensa e bem sucedida. Tudo bem que a vida conjugal não andava de vento em popa, mas parecia não se importar com isso.

Como tantos personagens do mundo das letras de que já tratei, era um sujeito de múltiplos talentos. Era, pois, dos tantos que classificamos figurativamente de intelectuais dos “sete instrumentos”. Além de poeta, era professor, filósofo, diretor editorial e tradutor, entre outras tantas aptidões. Nasceu em 20 de maio de 1922, em Reus, na região espanhola de Tarragona. Uma das melhores avaliações que li a seu respeito (infelizmente, não anotei a fonte, mas faço questão de reproduzi-la entre aspas, para deixar claro que não é minha) é a seguinte: “Gabriel Ferrater representa um modelo de intelectual e de poeta heterodoxo e atípico. Foi, basicamente, um homem de letras liberal e independente, cético, anti-provinciano, despojado de ideologias e dogmatismos (políticos ou estéticos) e, acima de tudo, lúcido, iconoclasta e provocador. Foi um personagem pouco convencional, autodidata, rigoroso, amado, didático e sempre apaixonado.

Em termos literários, seu estilo não comporta classificações. Foi uma espécie de síntese entre a tradição poética (jamais abriu mão, por exemplo, da utilização de métrica) com a modernidade. Os críticos identificam, em seus poemas, um pouco de François Villon, de Charles Baudelaire, de Arthur Rimbaud, de Robert Frost, de Cesare Pavese, de T. S. Eliot e de Bertholt Brecht, entre tantos poetas, sem que se pareçam, de fato, com os compostos por nenhum deles. Reitero, sua poética destaca-se por ser rigorosamente original, originalíssima, à prova de classificações.

E onde entra sua “obsessão pelo tempo”, que eu disse ter  identificado? Bem, ela não é ostensiva. É sumamente sutil. Todavia, é comprovável.  Cito duas provas, que considero as mais importantes e incontestáveis. A primeira foi o fato dele ter composto a totalidade da sua obra poética em apenas uma década, entre 1958 e 1968. Aliás, teve mais livros publicados postumamente (seis) do que em vida (quatro). O leitor atento pode concluir que se tratou de coincidência. Pode ser? Pode! Mas será que foi? A segunda pista, todavia, creio ser contundente e definitiva.

Eu informei que Gabriel Ferrater disse, em certa ocasião, a um grupo de amigos que não viveria além de meio século. Deu a entender que sequer chegaria a tanto. Ao que se sabe, ninguém o levou a sério. E nem poderia! Todos dizemos, e o tempo todo, um monte de bobagens, principalmente quando tentamos adivinhar o futuro. E elas entram por um ouvido e saem por outro, sem gerar consequências. Ocorre que Ferrater cumpriu o que prometeu. Porquanto, os amigos se convenceram, quando tudo se confirmou, que não se tratou, propriamente de “previsão” feita por ele, mas de “promessa”. Como? Simples!

Gabriel Ferrater cometeu suicídio, no quarto de sua casa, em Barcelona, ingerindo grande quantidade de uma mistura de barbitúricos. Não estava doente, não estava triste, não estava deprimido e nem tivera nenhum insucesso financeiro ou desilusão amorosa. Não tinha o mínimo motivo para se matar. O suicídio ocorreu em 27 de abril de 1972. Faltavam só 23 dias para Ferrater completar cinquenta anos de idade, ou seja, meio século, o tempo que ele prometera a amigos que não atingiria. E, como se vê, não atingiu. Reitero, não se tratou de nenhuma “previsão”  Foi, isso sim, “promessa”, que findou por cumprir. Querem obsessão pelo tempo maior do que esta?

Boa leitura.

O Editor.    

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Um comentário:

  1. Fiquei esperando pelo menos "uma quadrinha" da produção de Gabriel Ferrater. Vou procurar.

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