sábado, 19 de outubro de 2013

Reconstrução – As trepadeiras

* Por Urda Alice Klueger

Agora elas estão por toda a parte, como se tivessem sido espargidas por alguma misteriosa fada que quisesse refazer todo o desfeito. Talvez estivessem por aí antes, mas abafadas, escondidas, quiçá em forma de sementes, ou sufocadas por outras ervas... não dá para saber. O fato é que agora elas se assenhoraram de grande parte desta terra que dismilinguiu com a Desgraça das Águas de Novembro, e pela forma incansável e poderosa como estão a trabalhar, a produzir uma rede de proteção para a aridez do oco dos morros de terras muito velhas de que é formada esta minha região, me impressionam profundamente, pois vejo nelas o grande batalhão de apoio que poderá nos fazer ir esquecendo, ir esquecendo ... quem sabe um dia a gente conseguirá não se lembrar mais.

Falo das trepadeiras, essas viventes que surgiram de onde não estavam, que surgiram sem que tivéssemos lembrança delas, que hoje com um lacinho cá, amanhã com um enroladinho lá, vão lançando suas gavinhas por sobre as marcas das desgraças que vivemos e formando toda uma rede, todas muitas redes por quase todos os lados, cobrindo montes de terras áridas e secas que sobraram do derretimento dos morros, e se enrolando por tudo, e reverdecendo os lugares que no passado eram tão verdes!

É bem verdade que continuam vermelhas, assim como se fossem de sangue coagulado, as profundas feridas que a Desgraça abriu nos morros da minha cidade, feridas de onde escorreram os mares de lama que ceifaram vidas e sonhos e alegrias, e que fizeram com que tantas aviltâncias humanas viessem à tona, como em tantos fatos acontecidos no tratamento com os flagelados ou no sumiço de donativos que a boa alma das gentes mandou de tantos lugares... Há feridas de todos os tamanhos, e há aquelas onde o derretimento dos morros deixou feridas abertas em tal ângulo que nem o menor capinzinho conseguiu, ainda, se fixar nelas para tentar esconde-las, e talvez nem na próxima Primavera, ou na outra, tal milagre da Natureza consiga acontecer para que a gente possa se lembrar menos...

Valentes onde conseguem ir e se agarrar, no entanto, as trepadeiras estão fazendo um trabalho silencioso e único, talvez o maior bálsamo que os nossos corações macerados precisassem depois de tantas amarguras.

Elas são diversas, desde umas bem miudinhas, de folhinhas de nada e formosinhas flores azuis, até àquelas de flores roxas e umas maiores, de baraços e folhas maiores, que ao anoitecer abrem grandes floronas brancas, tão grandes que lembram igrejas pequenas, com pequenos sinos de um palmo de boca que marcam os acontecimentos de pequenas povoações. E estão por todos os cantos, às vezes combinadas umas com as outras no mesmo espaço, a cobrir restos de barreiras áridas, barrancos desbarrancados, árvores entortadas ou de cabeça para baixo, pedaços de armários e sofás cobertos de lama, os mais diferentes signos da Grande Desgraça que como que partiu nossas vidas ao meio e levou de roldão tanta gente e tantos animais que nunca voltarão. Elas aparecem ao redor de esses tantos signos e começam a tecer sua teia, a lançar gavinhas até onde conseguem, a se enrolar por tudo, como que a encorajar os vegetais que vegetam ali por perto, e é como se lhes acenassem e lhe dissessem baixinho: “Venham, podem vir! Estamos a lhes garantir sombra, quiçá um primeiro cadinho de humus para alimenta-los adiante, quando criarem coragem de subir este montículo de barreira de terra tão árida, este recheio de morro que, faz perto de meio ano, desceu aqui ou acolá e causou tanta desgraça. É tempo de fazermos o recomeço, de ao menos escondermos as tantas barbaridades!”
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Anunciadoras da Esperança, as trepadeiras estão por todos os lados, agora, enrolando seus baraços e baracinhos em todos os pontos e coisas onde conseguem se enrolar, criando uma antecipada Primavera para as nossas almas sequiosas de voltar à normalidade. Um ano não acabou, outro não começou, o mundo desmilinguiu, e parecia que nada poderia normaliza-lo de novo. E então aparecem essas mágicas trepadeiras que eu não esperava, fazendo um trabalho único em tantas feridas daqui ao meu redor. Quem diria, tão fraquinhas, baracinhos de nada, folhinhas humildes, só as flores a se fazerem respeitar – e são elas as que estão trazendo o bálsamo para o meu coração tão magoado e o verde de volta às feridas deste pedaço do planeta. Obrigada, minhas queridinhas, por toda a emoção que me causam.

Blumenau, 07 de Maio de 2009

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

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