quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Minha vida é um livro fechado

* Por Fernando Yanmar Narciso

Creio que, por mais revolucionária que uma pessoa seja capaz de se mostrar, em nossa essência somos muito conservadores. As prioridades podem ser outras, mas no fundo os humanos buscam apenas chegar ao fim da vida com algum conforto. Num ano em que a palavra de ordem foi o protesto, estivemos basicamente reivindicando o básico para a sobrevivência. Quem pôs o narizinho de palhaço ou a máscara de V de Vingança e foi sapatear nos telhados de Brasília, assim como os grevistas, eles querem simplesmente melhoras no que já possuem, e não mudanças radicais, que podem tanto melhorar ou piorar a situação. Saúde, educação, dinheiro, segurança, combate à ladroagem e à arrogância dos políticos; o básico do básico para uma vida digna. Coisas tão simples e, no entanto, aparentemente impossíveis de conseguir um consenso...

Sendo que já temos um governo “de esquerda” há tempo o bastante para envelhecer um barril de uísque e os problemas da época eram quase os mesmos de agora, por que no tempo de Lula no poder não se via protestos pelas ruas? Se bem me recordo, nem quando o caso do mensalão explodiu, as pessoas tiveram saco para erguer-se em armas contra o governo. Isso porque, por mais coronelista e sacana que Lula seja, ele parece ter herdado o histórico dom do presidente Franklin Roosevelt de acalmar as massas, mesmo quando o estupro era inevitável.

Temos sim o direito de ser conservadores, mas sem necessidade de ultrapassar a barreira do bom senso e se tornar um retrógrado xiita e reacionário, como tantos formadores de opinião por aí. Pessoas do naipe de Olavo de Carvalho, Arnaldo Jabor e Luiz Carlos Prates- um de meus ídolos...- têm a nobre missão de olhar para o caos à sua volta e dizer lugares-comuns como “No tempo de meus avôs isso não acontecia”, ou “No tempo dos tucanos no poder não tinha tanta bandalheira”, ou, ainda pior, “Tempo bom era quando os militares mandavam no país!” Parece que alguns deles nunca estiveram num DOPS da vida ou foram deportados ilegalmente para algum cafundó do mundo. Pois não é que os rebeldes e subversivos músicos remanescentes dos tempos da ditadura, que foram torturados, interrogados e exilados pelos meganhas de Médici, os heróis da MPB de várias gerações têm se revelado verdadeiros “reaças” conforme foram amadurecendo e se acomodando?

Chico Buarque, Roberto Carlos, Erasmo, Djavan, Milton Nascimento, Caetano e Gil cortaram papo e não querem mais deixar publicar nenhuma biografia não-autorizada!

Isso mesmo, folks. Para chegar às prateleiras, só se o livro passar pela mão de ferro dos recém-revelados censores, para poder ainda por cima conseguir uma boquinha com os direitos autorais. Dá pra acreditar numa afronta dessas? Quer dizer, se até Justin Bieber, no alto de seus 19 anos, já tem quase uma dúzia de biografias underground- E eu já li quase todas, são um ótimo antídoto para overdose de Viagra- então por que essas cobras criadas da música pra barzinho, vulgo MPB, resolveram usar da censura a essa altura de suas vidas?

Dizem que estão tomando essa medida como um exercício do direito à privacidade, mas do tanto que a vida desses antigos símbolos da liberdade de expressão já foi esmiuçada, o que faltaria para ser contado? Agora só me surpreenderia se algum biógrafo dissesse que o Rei Roberto nasceu com uma cabeça extra, saindo pelas costas, ou que em seu exílio, Chico Buarque dividiu uma lata de lixo com o mesmo palhaço que Raul Seixas vivia dizendo que fez amizade quando foi deportado para Nova Iorque. Na verdade, seria pego de surpresa até se alguém publicasse que Caetano e Gil tiveram trigêmeos... E Gil foi a mãe.

Provavelmente, essa nova cruzada de nossos amados artistas para barrar biografias feitas pela imprensa marrom só poderá ter duas saídas: Ou os já citados figurões se arrependem do que disseram e voltam atrás, ou mais gente tentará burlar a censura prévia e lançará biografias “ilegais” na cara dura, pois como se sabe, a proibição de qualquer coisa só faz crescer a vontade de fazê-las. As declarações polêmicas a respeito do problema feitas por eles, e as sucessivas tentativas de “remendar” as besteiras que falaram, deram a letras contundentes e sangrentas como Cálice e É Proibido Proibir um acidental tom de rebeldia oportunista. Será que, no final das contas, aqueles músicos heróicos dos festivais da TV Record dos anos 60 pensavam do mesmo jeito que as versões parcialmente senis de hoje?

Pior é que o conservadorismo parece ser o caminho da roça para a maioria dos músicos quando atingem os 50 anos ou perdem um pouco de sua relevância no meio musical. O que dizer de Dave Mustaine, lendário líder da banda de metal Megadeth, ter se filiado ao partido Republicano há alguns anos, ou de Roger Moreira, com suas letras de protesto da década de 80, ter aceitado que o Ultraje a Rigor se tornasse a bandinha do programa de Danilo Gentilli? A única pessoa que já vi ultrapassar a barreira dos 80 anos com o mesmo sentimento rebelde da adolescência foi o político Plínio de Arruda Sampaio. Até o comentarista Reinaldo Azevedo, imortalizado por suas vociferações de extrema-direita e pela falta de humor, tem se esbaldado com a situação e feito ataques cínicos e iconoclastas às declarações do autor de Ópera do Malandro, chegando ao inimaginável cúmulo de vociferar contra os erros de ortografia no direito de resposta do poeta.

Infelizmente, tudo indica que nossos heróis morreram mesmo de overdose, em algum momento entre o AI-5 e a eleição de Collor... Quero ver alguém contestar os impropérios do Lobão agora!

*Designer e escritor. Sites:


3 comentários:

  1. Nossa! Atirou para tudo quanto é lado. Sai de baixo. E prepare-se para as respostas que virão.

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  2. Tem razão Mara, quando Fernando começa a redigir lá vem chumbo grosso. Seu estilo irreverente e bem humorado é inconfundível. O título da crônica não poderia ser outro: Minha vida é um livro "fechado" (aspas minhas) no que tange ao cerco (censurável) às biografias.

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