domingo, 20 de outubro de 2013

Lembrança com pontinha de mágoa

* Por Pedro J. Bondaczuk

A “memória” do brasileiro, em relação às principais personalidades da vida nacional, notadamente de artistas e desportistas, mas também de outras que tiveram alguma relevância na cultura do País, parece estar melhorando. Espero não estar enganado. O melhor exemplo disso, me parece, são as manifestações que vêm ocorrendo em relação ao centenário de nascimento de um poeta (prefiro chamá-lo, por razões sentimentais, assim, embora exercesse inúmeras outras tantas atividades, posto que a maioria relacionada à arte), que carinhosamente ficou conhecido pelo diminutivo, ou seja, por “poetinha”. O leitor perspicaz já percebeu a quem me refiro. Sim, é a ele mesmo, a Vinícius de Moraes, nascido no Rio de Janeiro num 19 de outubro de 1913.

Relutei muito em escrever a propósito. Afinal, o que eu poderia acrescentar sobre essa figura tão querida e tão popular, que alguém já não tenha dito? Só de documentário de televisão, por exemplo, assisti pelo menos a três nos últimos dias. A emissora que não preparou programa especial sobre ele, pelo menos mencionou a data, ou fez algum tipo de registro, assim como diversas rádios que sintonizei também fizeram. Na internet, então, as matérias sobre o “poetinha” ascendem aos milhares. Até mesmo o “Google” presta-lhe oportuna e merecida homenagem. Há, pois, algo de novo, que ninguém nunca tenha dito ainda, que eu possa dizer, ou na verdade, escrever? Respondo: sim, há.

Sabem o que? Há a minha experiência pessoal que, como a própria caracterização declara, é exclusiva. É minha e de mais ninguém. E no que ela consiste? Consiste nas circunstâncias em que conheci, pessoalmente (ou quase) Vinicius. Milhares, quiçá milhões de outros tantos também o conheceram. Tudo bem, mas não da mesma forma que eu. Esse conhecimento, para muitos, admito, foi muito mais profundo do que o meu. Vários conviveram, inclusive, com ele, freqüentaram sua casa e foram seus amigos, alguns, até, íntimos. Mesmo assim, a experiência que tive foi original, foi única, foi exclusiva, por ser só minha. Ninguém sabe, e jamais saberá se eu não revelar, o que senti naquele momento, pois aquele sentimento foi só meu.

Conheci Vinícius em 1977, em uma viagem que fiz ao Rio de Janeiro, para “esfriar a cabeça”, em um período tormentoso da minha vida. Na ocasião, eu já residia e trabalhava em Campinas, era moço, tinha 34 anos de idade e a alma repleta de sonhos (alguns, concretizei e outros tantos ficaram pelo caminho, esmagados pelas circunstâncias). E ele? Ele já era o mito que sempre foi, conhecido e reverenciado mundo afora pela sua genialidade, tanto como poeta, quanto, e principalmente, como compositor, autor, entre tantas pérolas musicais, de “Garota de Ipanema”.

Foi um conhecimento casual, diga-se de passagem. Não foi, pois, nada planejado e muito menos programado. Caminhando, a esmo,  Ipanema afora, cismei de entrar em determinado bar, para tomar um refrigerante ou, quem sabe, um uísque (por que não?).. Não me perguntem em qual, pois não saberei responder. Não consulto nomes de estabelecimentos do tipo quando preciso ou quero comprar qualquer coisa. Entro neles ao acaso, por impulso e pronto. Foi o que fiz nesse dia.

Era um barzinho aconchegante, embora comum, sem nada de especial. Tinha várias mesas (não contei quantas), todas ocupadas naquele instante. Ao redor de uma delas, havia uma grande concentração de pessoas. Alguém (não me lembro quem) tocava violão e estavam cantando sambas da minha predileção. Identifiquei, de cara, porém, a figura característica e inconfundível de Vinícius de Moraes. Foi um choque para mim! Estava ali, bem pertinho, a uma distância de um metro, se tanto, um dos meus ídolos, compositor e poeta do qual eu conhecia, de cor e salteado, uma infinidade de produções e que jamais supus que viria a conhecer pessoalmente! Que oportunidade!

Meu primeiro impulso foi o de tietar, ou seja, de puxar conversa com ele e pedir-lhe nem que fosse um reles autógrafo. A timidez (maldita timidez!) impediu-me disso. Aconteceu, nesse dia, o mesmo que voltaria a ocorrer anos depois, em relação a Chico Anysio, quando este se apresentou num teatro de Campinas. Como sempre, Vinícius estava com copo na mão. Certamente de uísque. Estava loquaz, como havia sido descrito por muita gente, e ria, ria de fazer gosto. Do que? Não sei! Não atentei para isso. A emoção não deixou.

Em certo momento, ele olhou para mim. Não foi um olhar casual, estou certo. Algo em minha pessoa chamou-lhe a atenção. Fiz-lhe um aceno de cabeça, como se fosse casual (não era, evidentemente) e ele retribuiu (ou assim me pareceu). Pensei: “é agora” e cheguei a levantar da cadeira para ir em sua direção. Mas... a timidez (maldita timidez!) me reteve. Tornei a sentar-me, à espera de nova oportunidade. Mas... esta nunca apareceu. Após certo tempo de indecisão, desisti de fazer contato. Ele nunca aconteceu. Hoje lamento demais não ter tido a coragem de um ato tão simples, mas que para mim teria valor incalculável.

Tempos depois, mais exatamente três anos, quando estava na redação do Diário do Povo de Campinas, onde então trabalhava, preparando-me para nova jornada, que entraria madrugada adentro, soube, consternado, da morte do “poetinha”. Isso foi em 9 de julho de 1980. O jornal preparava uma edição especial sobre Vinicius de Moraes, da qual pedi para participar. O editor-chefe, na ocasião o José Carlos Tomé, se opôs. Argumentou que eu tinha quatro páginas, da editoria Internacional, para editar, além de um comentário assinado, para fazer. Fez-me ver que não haveria tempo para essa tarefa e mais uma sobressalente, no caso, o suplemento especial sobre o “poetinha”. Contrariado, não me restou alternativa, se não obedecer.            

Mas a notícia da morte deixou-me, além de consternado, como seria de se esperar, irritado com meu ídolo. Por que a irritação? Ora, vejam só se não era para se irritar. Por que não foi ele que fez a dramática recomendação aos amigos para se cuidarem? Deixou, inclusive, registrada em uma crônica este patético apelo: "Ah, meus amigos, não vos deixeis morrer assim. Ide ver vossos clínicos, vossos analistas, vossos macumbeiros, e tomai sol, tomai vento, tomai tento, amigos meus... Amai em tempo integral, nunca sacrificando ao exercício de outros deveres este sagrado, do amor. Amai e bebei uísque. Não digo que bebais em quantidades federais, mas quatro, cinco uísques por dia nunca fizeram mal a ninguém. Amai, porque nada melhor para a saúde que um amor correspondido. Mas, sobretudo, não morrais, amigos meus".

Como alguém, que se preocupava tanto com a saúde dos amigos, não se preocupou com a sua?! Como se “deixou morrer”? Será que amou menos? Ou será que tinha um novo amor, mas que não era correspondido? Não, não acredito! Vinicius nunca foi mal amado e também não amou pouco. Seu amor era sem limites, não raro, até irresponsável, mas incondicional. Não, não foi isso. Será, então, que não foi ver seu analista, seu macumbeiro ou não tomou sol, não tomou vento, não tomou tento? É provável. Sim, “poetinha”, como você pôde fazer isso conosco, que o amávamos tanto?! Como foi que “se deixou morrer”?! Sim, como?!!  

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 


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