sábado, 26 de outubro de 2013

Jornal do caos – Vênus


* Por Ronaldo Bressane


O dia azul... pensei em pão com manteiga. Mas a chuva caiu de repente, eu vi as pessoas lá embaixo se morcegando, pequenininhas, um soluço... Choveu o dia inteiro. Outra vez não saí de casa. Me lembro às vezes – flashbacks ou déjàvus – da emoção que tive a primeira vez que vi uma manchete. Era minha irmã, me acordando aos berros na casa de nossos tios: –
nossa casa pegou fogo, nossos pais morreram

Eu voltei de dentro dos meus sonhos pra cima da cama mijada como Prometeu que roubava o fogo: na sua histeria de fofoqueira de aldeia saqueada, minha irmã me dava minha primeira noção de um fato absoluto. Um fato nada mais é que uma ação que muda irremediavelmente o futuro – aí, de vez o mundo dos não-fatos se perdeu de mim, e portanto, a causalidade dominaria todo o meu tempo, não haveria mais saída de emergência para o dois mais dois. De dentro dos meus sonhos, me foi comunicado que meu mundo de sonhos desconexos havia terminado... Dali para a frente, meu cotidiano sucumbiria à voragem dos acontecimentos com causa e efeito e lugar e época e personagens e um sentimento de irrestrita verdade (verdade: meus pais sempre me falavam que preferiam, a serem sepultados, o crematório da Vila Alpina, então tudo bem, beleza).

Tenho parado de acreditar nisso a cada manhã que vejo o casal de velhos na casa em frente à padaria francesa alimentar os pombos da rua. Eles deveriam me ensinar alguma coisa – ah, mais uma, eu, esse infatigável viciado em aprender e esquecer. Tive uma pequena alegria – me dei conta de que era sexta-feira –, e resolvi dar uma festa, pra qual não convidei ninguém, exceto o motoboy, que saiu do elevador com a roupa toda molhada e uma pizza de rúcula e mussarela de búfala e tomate seco e um guaraná; mas ele não disse que não podia me acompanhar, daí comi a pizza enquanto lia as palavras impressas no disco de papelão delivery como quem solfeja um mantra tibetano. Ainda não consigo dormir com as luzes apagadas.

À tarde, pela primeira vez desde que me formei em jornalismo, há quinze anos, consegui escrever uns versos... Lendo o poema agora, não tenho total certeza de tê-lo escrito eu mesmo ou um outro. Melhor acender mais um, tomar um, deixa ver, dramin, e contar as gotas escorrendo pela janela enquanto o poema de que eu jamais me lembrarei arde no cinzeiro, em chamas (em chamas meu rosto – palor, luzes sombrias – refletido no vidro da janela, oculto do exterior pelas venezianas; janela de onde não virá nenhuma verdade... Não desisto de procurar ser surpreendido por um milagre).

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Quinta parte de “Jornal do caos”, conto de Céu de Lúcifer (Azougue Editorial)

*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e do blog coletivo FakerFakir (www.fakerfakir.biz).


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