domingo, 20 de outubro de 2013

“Felicidade Clandestina”(*)

* Por Risomar Fasanaro



Quando se fala em 1968 o que vem à cabeça da maioria das pessoas é repressão, tortura, exílio, ato institucional n° 5. Enfim...só se pensa em tristeza. Mas 68 não foi só isso. Havia toda uma juventude envolvida com o que se passava no país, mas que como toda juventude queria aproveitar a vida: cantar, dançar, namorar, enfim...Viver. E isso a ditadura de nenhum país conseguiu impedir.

A Coordenadoria de Relações Internacionais da Prefeitura e o Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco realizaram uma semana de debates sobre a Greve de Osasco, o movimento estudantil, a guerra do Vietnã  e a participação das mulheres em 1968.

Por isso prefiro falar do lado feliz daquela época. Não tínhamos computador, nem celular, nem IPOD, nem nada do que encanta os jovens de hoje, mas com nossos pobres mimeógrafos a álcool (quando alguém tinha), produzíamos textos que rodavam pelas escolas, pelas fábricas, pelas faculdades, sempre por debaixo dos panos e um único gravador de fita mini-cassete, que passava de mão em mão para gravar as músicas que participariam dos festivais. A gente nem conhecia o dono do gravador, mas ele chegava às nossas mãos. Isso poderá dar às gerações de hoje o grau de confiança e de solidariedade que nos unia. Mais do que isso, atesta o quanto éramos felizes.

Aquele foi um período de grande efervescência cultural. O movimento político não se dava de uma forma monocórdica, em que só se tratava de militância; ele estava profundamente envolvido com a literatura, com o cinema, com a música, com o teatro. E ao mesmo tempo que se lia os textos de Marx, de Marcuse, de Regis Debret, lia-se muito Oswald de Andrade,  Guimarães Rosa, fazia-se questão de ver  Terra em Transe de Glauber Rocha, de conhecer todas as canções de Chico, de Caetano, de Gil, de Sérgio Ricardo.
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Acredito que nos seria impossível resistir às perdas que sofríamos todos os dias, dos nossos amigos, dos nossos professores; impossível resistir ao desespero dos que eram mortos, à saudade dos que partiam para o exílio, se não fôssemos ancorados pelo trabalho daqueles que produziam cultura, dos que produziam arte.

O que seria de nós se não fôssemos embalados pelo canto do Chico Buarque, pelos sons e cores da Tropicália, pela voz de Elis, pelas rodas-de-capoeira, pelas cirandas pernambucanas, pela pílula anticoncepcional, que nos liberou sexualmente, e por tudo que a cultura nos proporcionou naquele período, e que foi de certa forma nossa resposta revolucionária ao que eles nos impunham?

Eles, os que aplicaram o golpe, pensaram que estavam fazendo uma revolução. Que pena... não perceberam que na verdade, não se faz uma revolução apenas com armas, com fardas, atos e decretos. As armas, os decretos, as torturas instauraram apenas o medo, a revolta, o rancor. Revolução foi o que fizemos. Com pensamento, sentimento, criatividade, solidariedade e resistência.
           
Não saberia dizer (não tenho conhecimento para isso) se as revoluções, frutos da realidade que nos cerca, brotam lentamente na alma das pessoas, germinam, crescem, dão flores e frutos, ou se surgem de repente, sem razão nem perdão e nos levam a mover montanhas. Se são algo maior que nós. E isso, me desculpem os generais, aquela revolução existiu, mas não na direção que eles queriam e sim exatamente no sentido oposto.

E quero aqui reiterar: fomos felizes sim. Muito felizes! Nunca se viu peças de teatro com tamanha riqueza de texto, de montagem, de tudo. Relembrar Os Mutantes com Rita Lee vestida de noiva, a banda toda com o rosto pintado demonstra que a novidade, a vanguarda de hoje surgiu com a nossa geração.
           
E havia também o Pasquim o jornal que revolucionou a imprensa brasileira. Era impossível não vibrar com as entrevistas que eles publicavam. Ler o Fradim do Henfil, as tiras da Graúna era esquecer qualquer tristeza. Era impossível não gargalhar ao ler no “Última Hora”  O Festival de Besteiras que Assola o País, do Stanislaw  Ponte Preta. Não, 1968 não foi só tristeza, não foi só tortura, morte, exílio. Foi principalmente carnavalização. Um carnaval de resistência, pois não aceitamos passivamente o açoite dos algozes.
           
Depois de 68 nunca mais nem o mundo nem o país foram os mesmos. E foi graças à “divina loucura” de Zé Celso, de Glauber Rocha, de  Leila Diniz, que hoje estamos aqui.

E não é possível esquecer o chazinho na casa do amigo, em um domingo chuvoso com a voz de Violeta Parra cantando Gracias a La Vida indefinidamente na vitrola. Se não fosse tudo isso, o que teria sido nossa vida durante a ditadura?!

 (*) Título de um conto de Clarice Lispector

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora,  autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

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