sábado, 19 de outubro de 2013

Brasileirinho


* Por Pablo Uchoa


Se eu fosse mais velho, diria que as gerações mais novas não se lembram de um tempo terrível do nosso país, em que falar de estabilidade monetária era se referir a Estados Unidos ou Europa.


Pois considero que minha geração está entre as mais novas mas, pasmem, sobretudo no mundo cibernético, blogueiro, muitos meninos há por aí que nunca vivenciaram uma só troca de moeda. O Ministério avisava, era preciso cortar zeros, o mil virava um, um milhão virava cem mil, uma parte do dinheiro perdia o valor e lá íamos nós, com os bolsos cheios de notas que nada valiam (muitos nem isso).


Eu era um menino e minhas compras eram apenas chicletes e balas na bodega da esquina, mesmo assim tinha a carteira estufada de notas. Valiam nada, aquelas notas. Faziam volume, apenas.


Pois esses dias, fuçando as gavetas, encontrei uma singela crônica que escrevi naquela época, seria talvez 1994, vigorava a Unidade Real de Valor – URV, que precedeu o real. O Brasil vivia uma nova troca de moeda e nossos bolsos estavam cheios de notas que valiam quase nada.


Notas altas, naturalmente. Porque os pequenos trocos a gente nem se dava o trabalho de carregar. Daí se originavam situações como essa, que transcrevo como originalmente relatado:

"Aquele barbudinho era encrenqueiro que só ele. Passando certa vez por uma famosa praça, como de costume resolveu sentar-se numa lanchonete e pedir o bendito caldo de cana do final do dia. Chamou o balconista:
- Amigo, por favor, o pastel tá quentinho?
- Saído agora - respondeu o magrelinho, limpando as mãos no avental.
- E o caldo de cana, geladinho?
- No ponto.
- Pois então me vê aí um pastel com caldo de cana.


Enquanto o rapaz servia o cidadão, a mulher do caixa ia passando o troco.
- Aqui, meu senhor – disse ela, estendendo-lhe algumas notas amassadas e, vejam só!, uma caixa de fósforos.
- Minha senhora – ele replicou naquele ar safado de inocência –  está faltando troco.
- Não, não está, não. O senhor pode conferir aí.
- Olha só: dez, vinte, vinte e cinco, vinte e seis, sete, oito, nove...
- Então: mais a caixa de fósforos, trinta.
- Caixa de fósforos!!?

-É. É.
- Espera. Eu acho que a senhora não entendeu bem. Eu não comprei a caixa de fósforos.
- Moço, o senhor é que não entendeu bem. O senhor não comprou a caixa de fósforos, disso eu sei. Mas, como não tem troco, vai essa caixa de...

O camarada protestou: vai é o... Mas de jeito nenhum!
- Meu senhor, não tem troco. O senhor quer que eu faça o quê?
- Poderia ao menos ter dito que não tinha troco, que aí eu é que não tinha pedido o pastel com caldo de cana.


A funcionária do caixa inclinou o pescoço para trás, suspirou devagar:
- Moço, qual o problema do senhor levar a desgraçada da caixa?
- Qual o problema? Meu amor, pense bem: lá em casa eu não fumo, não acendo vela, meu fogão é elétrico, então pra que diabos eu vou levar uma caixa de fósforos?
- Amigo, você tá no Brasil. –  o freguês do lado resolveu conciliar –  Jeitinho de brasileiro, o senhor sabe como são essas coisas.
- Ah! Sei coisíssima nenhuma.


Então botou a boca no mundo: clamou pelos direitos do consumidor, que um absurdo desses não podia sair impune, a senhora compreenda já uma coisa que eu não preciso comprar seu nada se não tiver pedido, o Procon ia ficar sabendo daquele cartel, a senhora me mostre já o alvará do funcionamento do seu bar.
- Moça, é o seguinte –  concluiu – eu quero falar com o gerente desse troço aqui. Pode ser?


Podia. A gerência ficava num quartinho do fundo.
- O senhor é o gerente?
- Sou, sim, senhor.

- Amigo, o caso é que eu comprei um caldo de cana com pastel e a sua funcionária simplesmente não quer me dar o meu troco: cismou que ia me empurrar uma caixa de fósforos.

O gerente deu uma risadinha amigável, colocou as mãos no ombro do barbudinho.
- Ora, amigo, mas que bobagem. O senhor sabe, moeda nova, trocada há pouco, prata insuficiente no mercado, às vezes a gente tem que fazer uns sacrifícios, não é?


O barbudinho não arredou o pé - e pra voltar pra casa, como é que era, será que ele podia pagar o ônibus com caixa de fósforos também?


O gerente viu que não tinha jeito. - Me desculpe, mas eu não posso fazer nada - quis encerrar.
- Como não? Então o senhor é gerente aqui para quê?
- Veja bem: se não tem troco, posso fazer o quê? Tirar do meu bolso?


O cidadão, então, fez menção de botar a boca no mundo: não podia ficar ali, perdendo tempo! Tinha mais o que fazer!
- Ora, pros diabos!!! Resolva-se com a caixa, que eu tenho coisas mais importantes a resolver! –  esbravejou o gerente, colocando-o a pique dali.


Voltou para o balcão, disposto a armar o maior barraco, mas aí a moça já tinha conseguido a moeda - lá estava ela, exibindo o centavo que faltava:
- Agora, o senhor sabe o que faz com ele ? - desafiou, ameaçando soltar palavras de não muito agrado.
- Sei, sim senhora – e, virando-se para o magrelinho – Aqui, meu filho, para completar sua passagem de ônibus."

(*) Cronista e editor do site www.narizdecera.jor.br. Vive atualmente na Inglaterra, dedicando-se a pesquisas no Institute for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres. Autor do livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed. Globo, 2003), menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog 2004.

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