quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Plano da operadora

** Por Marcelo Sguassábia

Obra de ficção*


- Vamos surrupiar dois centavos, além dos seis de cada ligação.
- Mas e se perceberem?
- A gente devolve só para quem der pela falta e reclamar. E pra reclamar vai ter que esperar a musiquinha enlouquecedora até cair a ligação.
- E se o lesado ligar de novo?
- Mais uma hora, uma hora e dez da mesma musiquinha. Tortura de solitária mesmo. Aí a gente programa para a ligação cair outra vez. Na terceira tentativa, é sinal que o sujeito está mesmo determinado. Então atendemos, assumimos a cobrança indevida como falha de sistema e fazemos o estorno em créditos. Mas essa medida extrema, pelas nossas projeções, corresponderá a 0,3% das tentativas. O resto desistirá no meio do caminho, por exaustão. É importante lembrar que o plano (o nosso, não o plano promocional do cliente idiota) entra em ação um mês após o início da promoção. Isso porque nos primeiros dias o cliente fica conferindo mesmo, pra ver se é debitada a quantia certa para cada ligação. Depois ele relaxa e não confere mais. Aí sim, podemos bater a carteira mais à vontade.
- Você diz aqui na descrição que esta é a fase 1 do estratagema. Como seria a fase 2?
- É quando começamos a deitar e rolar pra valer. Multiplicamos a tungada de 2 centavos para o equivalente a uns 3 dólares. Logicamente, quanto maior a perspectiva de ganho, maior o risco. Podemos dizer que, nessa etapa, aqueles 0,3% de reclamantes que seguem na luta passam para 4,2%, num cálculo conservador. Mais uma vez, atribuiremos o erro ao sistema e efetuaremos o reembolso após a terceira tentativa do otário. No decorrer do processo, a fúria do assaltado tende a aumentar, e orientaremos a atendente a passar a ligação para uma suposta superiora que dará uma atenção maior ao sujeito, de acordo com o script aprovado na nossa reunião anterior.
- Sei. É hora daquela lenga-lenga toda, de que "é através de pessoas como o senhor que podemos sanar nossos erros e aprimorar nossos serviços"..
- Perfeitamente. Se ainda assim o mané quiser mais briga - teimando em reaver o dinheiro referente a afanadas retroativas, o máximo que pode acontecer é ele chorar as pitangas nas redes sociais ou trocar de operadora. Entrar na justiça ele não vai, não compensa o custo com advogado.
- Bom, vamos em frente. Fase 3.
- A fase 3 é a nossa salvaguarda, mas ela tem seu preço.
- Bom, já vi que daqui pra frente o teor é sério. Alguém fez uma varredura antes da gente começar essa conversa?
- Fica tranquilo. Esqueceu que nós somos a operadora? Estamos conversando num private circuit de última geração.
- Então vai. Prossegue.
- O esquema vai dar dinheiro demais. Mais do que seria seguro para ratear unicamente entre nós.
- Vai daí que...
- Vai daí que uns 35% do total arrecadado no golpe vai pra instâncias superiores, caso estoure escândalo ou se algo muito fora do previsto acontecer. Digamos que essa parte seja um fundo de reserva anual. Findo o exercício, se nada sacarmos para eventual "operação abafa", a sobra de caixa continua intocável. Nunca se sabe o dia de amanhã.
- Por mim, pode tocar. Só uma dúvida: qual o nome do plano?
- O nosso ou o dos otários?

*Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais é mera coincidência.

* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).



Um comentário:

  1. Uma mera coincidência bastante abusiva das operadoras de telefonia móvel. Elas dizem que nunca tem razão, mas o usuário (leia-se "otário", como já diz o texto) perde os reais e a saúde mental. Enquanto isso as funcionárias também adoecem por responder defendendo as empresas que não fazem nada além de cobrança coletiva indevida. No Facebook chora-se, porém é inútil, pois o nosso dinheiro surrupiado dá ainda mais poder e força às invencíveis donas do pedaço.

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