sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Restaurante Gozadinho

* Por Edir Araujo

Nessa época eu era um garotinho traquinas e meus pais, muito humildes, eram caseiros numa fazenda, onde passava bem próxima uma rodovia muito movimentada. Éramos 11 irmãos, eu era o caçula. Era uma vida difícil e passávamos por muitas privações. Então meus pais tiveram a feliz ideia (a princípio, infeliz) de montar uma barraca à beira da rodovia para vender algumas coisas, para ver ser melhorava a renda da família. Começaram timidamente, vendiam um pouquinho de tudo; cachaça, banana, doce de abóbora que mamãe fazia, etc. Carros de passeio e principalmente os carreteiros iam aos poucos se acostumando com aquele humilde quiosque. Era um “vende-se-de-tudo”. Cafezinho era muito procurado, cigarro, etc.

Passado algum tempo, porém, para desgosto de meus pais, aquele meio de subsistência parecia não progredir muito. Quase desistiram, era muito cansativo e eles tinham que cuidar da fazenda também, onde lhes davam um mísero salário. Meus irmãos iam se revezando na birosca, sob as ordens de papai. Ora ficava um, ora ficava outro, outro ia à caça, outro buscar água na mina, etc. Um belo dia mamãe, além dos gostosos doces que fazia (eu vivia rodeando ela para que me deixasse raspar a panela de doces) resolveu fazer uma feijoada. Um de meus irmãos fez uma tabuleta de papelão sobre um cavalete e escreveu: HOJE FEIJOADA. Foram vendidos só dois pratos, o que sobrou comemos tudo. Dormimos, eu e meus irmãos, com a barriga bem cheia aquela noite. Não que a gente passasse fome, mas não era todo dia que havia feijoada. Tive até diarreia no dia seguinte, mas para um moleque de 8 anos que comia caruru, brotinho de abóbora e goiaba verde, foi uma maravilha.

Bem, no dia seguinte, mamãe, teimosa como ela só, fez mocotó. Meu irmão, o da tabuleta, escreveu lá; HOJE MOCOTÓ. Naquele trecho a rodovia havia uma reta enorme e era possível ler o aviso tranquilamente. Havia um posto-restaurante a cerca de 15 km dali, muito distante da gente. Mas quanto ao mocotó, vendeu um pouco mais e comemos o que sobrou. Não tínhamos geladeira e se fosse guardado para o dia seguinte, com o calor que fazia, certamente estragaria, e a alegria seria então dos porcos. Desta feita, papai resolveu matar um porco para mamãe assar o pernil no forno à lenha. Meu irmão da tabuleta, escreveu lá; HOJE PERNIL DE PORCO ASSADO. Eram duas tabuletas, uma em cada margem, para que fossem vistas nos dois sentidos da rodovia. Bom, para nossa alegria e para tristeza de meus pais, vendeu pouco e enchemos o bucho de pernil de porco.

Os dias foram passando e os resultados não eram compensadores. Até que certa vez mamãe fez um ensopado de galinha. Cheirava longe e me dava água na boca. Mamãe era cozinheira de mão cheia, é bom que se diga. Então ela me deu uma provinha na colher para que eu não “aguasse”. Desta vez porém meu irmão da tabuleta não estava presente e, como os outros faziam outras tarefas. Só estávamos eu e mamãe. Era semianalfabeta e tinha dificuldade para escrever. Como eu estava sendo alfabetizado, já escrevia mais ou menos. Meu irmão não chegava e tomei a iniciativa de substituí-lo naquela tarefa.

Saí quieto, tomei de um carvão e escrevi: OJE GOZADO DE FRANGO REFO GADO COM GALINHA. Na verdade eu queria dizer: Guisado, mas "saiu" Gozado. E para nossa surpresa vendeu tudo e mamãe, animada, resolveu repetir o cardápio no dia seguinte. A tabuleta não precisava ser trocada. O movimento dobrou. Não sei explicar o que aconteceu. Será que foi só por causa da tabuleta escrita errada? Eu me pergunto isso até oje... (opa!) hoje.

Adivinhem qual foi meu apelido a partir daí? "Gozadinho". Confesso que não gostava e por isso mesmo acabou "pegando". Só sei que a partir de então foi só casa cheia. Os fregueses elogiavam a comida e alguns comentavam, esgazeados: “Esse frango com galinha tá demais!”

A animação da casa ficava por conta de um sanfoneiro, amigo de papai, de um sítio vizinho. O progresso foi assustador. Meus pais puderam custear nossos estudos e dar-nos um pouquinho mais de conforto. Hoje, no lugar daquele modesto quiosque há um enorme restaurante, muito movimentado onde se lê, em letreiros luminosos: RESTAURANTE GOZADINHO, cuja fama está, irremediavelmente, ligada ao curioso episódio da tabuleta e à perseverança de meus pais.


("Contos Avulsos" pág. 18 – 02 de abril de 1993)

*Edir Araujo, poeta e escritor, autor dos livros A Passagem dos Cometas, Gritos e Gemidos e Fulana (inédito).



 

Um comentário:

  1. Uma surpresa gostosa (e põe gostosa nisso), de um erro que gerou vários acertos. Que maravilha. É por isso que você se tornou o que é. Parabéns, Edir!

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