terça-feira, 24 de setembro de 2013

A Europa medieval no Brasil via os Açores

* Por Amílcar Neves

Se alguém estiver a me ler agora que não se deixe levar pela pompa e pretensão do título aí de cima. Não sou pesquisador, nem professor, muito menos um especialista no assunto, em qualquer assunto. Não passo de mero escrevinhador que junta palavras na tentativa de parir um conto, uma crônica, e talvez, se lhe estivesse ao alcance do talento ralo, uma novela de costumes, ou de maus costumes. Nada sério, pois. Nada a que se deva conceder maior atenção e cuidado.

Nesta condição é que, por descuido e inadvertidamente, convidaram-me para escrever, em forma de ficção, sobre o personagem real Franklin Cascaes, já partido desta vida. A ideia mestra era reunir 13 escritores atuantes na Ilha de Santa Catarina e, em 13 contos a serem ilustrados (como o foram) pelo Tércio da Gama, valerem-se necessariamente do dito Franklin como protagonista ou personagem importante da trama. O livro viria a intitular-se, como efetivamente ocorreu, 13 Cascaes. Por isso precisavam-se de 13 escritores e, como decerto só se encontrou uma dúzia deles, convocaram-me para o projeto como se convocava o pior jogador de futebol entre os putos para completar o time na função de… goleiro.

Assim que me tornei o goleiro dos 13.

Franklin não era um sujeito levado a sério no meio acadêmico. Nem no social. Não cursara a universidade. Nascera no continente em frente, numa região então rural à beira do mar. Era uma pessoa simples que saía a conversar com os pescadores descendentes dos açorianos que vieram colonizar Ilha, litoral e o Sul do Brasil. Não usava métodos científicos nessas conversas. Era um cara esforçadinho, nada mais.


O sapiente Júlio de Queiroz, um dos 13 do Cascaes, conta que, necessitado de tomar posse dos Açores, Portugal juntou gente de toda a Europa e de todas as condições: foram holandeses, belgas, franceses, poloneses, russos, judeus e até portugueses, gente mais ou menos culta, mais ou menos ética, mas falante do português (posto que Lisboa, como Centro do Mundo, juntava gente de todo o mundo) e levada a trabalhar para poder sobreviver longe do mundo. Com isso, esse pessoal carregou consigo o seu mundo mitológico que povoava e vida e as noites naquele fim de Idade Média.

Quando os Açores estavam prestes a se abrir ao mundo, duas coisas aconteceram: havia gente demais no arquipélago e faltava um bocado de gente na Ilha e no litoral próximo. Esperto, o governo português percebeu que a solução para os dois problemas consistia apenas em deslocar açorianos para Santa Catarina. Assim decidido, assim efetivado. O pessoal chegou com sua mitologia medieval ainda intacta e passou uns 200 anos isolado do mundo.

Quando a Ilha estava prestes a ser descoberta – e contaminada – pelo mundo, e a vila de Nossa Senhora do Desterro já passara a chamar-se cidade de Florianópolis, entra em cena o tal de Franklin Cascaes que sai a colher histórias, e a escrevê-las, a colher cenas, e a desenhá-las, a colher personagens, e a esculpi-los. Fez às suas custas, no derradeiro momento histórico, o que antropólogo algum, escritor algum, sociólogo algum, historiador algum, professor algum, doutor algum sequer pensou em fazer: salvar os usos e costumes trazidos à terra pelos açorianos, salvar a Europa medieval que, ao acaso, aportara no Brasil.

E assim é que estamos agora povoados por bruxas, boitatás, lobisomens e bandos de gente desta espécie. Graças ao sacerdócio de um Cascaes, que registrou também, muito mais do que as assombrações, a vida dura e simples dos pescadores, dos engenhos de farinha, açúcar e cachaça, das tradições religiosas católicas e dos fabricantes de utensílios de barro para o cotidiano ilhéu-açoriano.

*Amilcar Neves é escritor, natural de Tubarão, Sul do estado de Santa Catarina, Brasil. O texto foi publicado originalmente na revista Mundo Açoriano de 26.4.2013. Reprodução autorizada pelo autor.


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