quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O menino que soltava lua

* Por Mara Narciso

Era uma vez um menino que tinha poderes mágicos. Ninguém compreendia seus superpoderes que envolviam os quatro elementos: a água, o ar, a terra e o fogo. Tinha amiguinhos invisíveis e falava com eles. Os adultos achavam que eles eram muito presentes. Crianças sós costumam criar amigos imaginários. Mas ele não era só. Tinha irmãos e companhia o tempo todo.

O menino poderoso crescia, e mesmo tendo crianças em volta, seus amiguinhos continuavam aparecendo. Traziam boas novas, e não o atrapalhavam tanto. Eram companheiros e o acompanhavam por boa parte do caminho. Na escola saia-se bem, em casa era inquieto, fazendo travessuras e conversando com os fantasminhas. Nisso, era diferente dos irmãos que não tinham essa habilidade. Zelosos, os pais o levaram ao psiquiatra, mas receoso de perder essa capacidade de ver, compreender e relacionar-se com o além, o menino mágico cuspia as pílulas receitadas. Rejeitou o tratamento, e por nada no mundo queria perder essa capacidade que poucos compreendiam.

Mas, assim como o menino mágico lamenta que seus filhos venham a crescer, ele tornou-se adulto e adquiriu novos dons. Recebia mensagens do outro mundo e orientava pessoas. Estudou, leu muito, fez faculdade, mestrado, enveredou por algumas profissões paralelas, apenas por diversão. Alegre, engraçado, dramático e de gestual amplo, foi o rei da festa, o centro das atenções de amigos e aduladores. Trabalhando desde adolescente, construiu praticamente um império, se fez rico, mudou a paisagem, deu festas, contratou cantores famosos para baile particular, correu mundo, namorou as mais bonitas mulheres, gastou a rodo, se realizou em todos os aspectos, sendo muito feliz.

Opinou sobre tudo com acidez e coragem, angariou invejosos e inimigos, confiou demais, acertou como também errou e viu seu mundo praticamente ruir. Embora desnorteado, a princípio, tratou de buscar outro rumo. Enquanto a realidade anterior sucumbia, mesmo que ainda possa em parte ser resgatada, encontrou o paraíso. Ou melhor, tratou de construí-lo com todo o dinamismo que lhe é característico. Não tem preguiça. Neste novo ambiente, fez amigos sinceros, pois valoriza as pessoas, e estas lhe mostram genuíno apreço. Começou do zero, contou moedas, aprendeu a fazer comida, a andar sem documento, girar por aí de chinelo e bicicleta, entendendo melhor seu papel no mundo. Melancolia ainda o assalta, mas concretiza novos sonhos sentindo o sol no rosto, a suave brisa e a liberdade de quem jogou fora velhos preconceitos, sem adquirir outros novos.

Não largou os amiguinhos de outrora, que ainda lhe mandam recados através de poemas que funcionaram a princípio como uma catarse e desde que melhorou, são registrados para seu deleite. Mostra apenas para pessoas escolhidas. Ainda assim, faz da sua vida anterior ferramenta para ajudar crianças em creches, e não se importa, de tempos em tempos, em voltar à origem para trabalhar apoiando e fazendo sopa para elas. Quantos se preocupam com quem não tem nada? Os bons e aqueles que viram duas realidades, a fartura e a escassez.

No seu novo mundo, as estradinhas para o norte são fofas e cobertas de areia branca, têm o braço de mar e casinholas, em boa parte amarelas, enfeitando o caminho com suas flores. A bela paisagem ganha mais cor pela plasticidade das músicas que se espalham mato adentro, durante o passeio. E para o sul, novos e encantadores cenários. Os sensíveis veem mais do que está lá. Abraçam com encantamento cada animal e vegetal visto, além das construções peculiares como antigas igrejinhas, pontes e fazendas coloniais. Há maravilhas por todos os lados, construídas com a força da alegria e da felicidade de quem traz festa no coração embolada com uma tristeza que insiste em não ir embora.

O mar está diante dos seus olhos. O coqueiral ronda as suas costas, e sua adorável cabana, o seu refúgio, está a duas quadras. O vento leste sopra trazendo um friozinho, que arrepia a pele bronzeada. De súbito, uma lua pálida, quarto crescente e tímida aparece lá no alto, sobre o mar esverdeado, ofuscante pelo sol do meio-dia. Ao vê-la tão serena, doce e hesitante, o homem fala convicto: em dias especiais eu solto lua. Empino-a feito papagaio com esta corda aqui. E não faço isso para todo mundo não, apenas para quem eu gosto muito.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


4 comentários:

  1. Outro excelente texto, Mara, de uma beleza comovente. Pena que nossos 256 seguidores não tenham o hábito de comentar (e não entendo o por quê dessa omissão. Enfim...). Excelente abordagem e linguagem, como sempre, corretíssima e precisa, modelo de boa literatura. Parabéns, mais uma vez!!!

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    1. A pessoa que inspirou o texto contou-me essas passagens e eu gostei muito de recontá-las, embora, vendo agora, ache que há excesso de adjetivos. A emoção fez-me exceder. Grata pela consideração de sempre, Pedro.

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  2. Belo texto, quase uma fábula. Uma lição de vida, e da importância, dentro dela, do autoconhecimento e da humildade. Muito bom, Mara.

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