quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Fazendando-se

* Por Marcelo Sguassábia

Ia abrindo a picada no facão. Pelo queimar do sol, meio dia e meia, se tanto. No verde fechado luziu a chave, a dourada chave-mestra dos lugares improváveis. Velha Dita benzedeira, dai-me caminho bom. Pai do mato e das estrelas, daqui não tem retornar nem arrependimento de ver coisas que não carecem ser vistas. Desse ponto por diante é por minha conta e risco. Lembrava a mãe que dizia: "do mato guarde distância".

Limpou o achado no brim cáqui, e no retomar da trilha um jacarandá dos baitas se fez porta à sua frente. Nessa hora virou rosto, e dá-lhe Salve Rainha implorando proteção – o ocorrido não era acontecência cristã. Temor de obra do cão, vontade de colo quente.

A dobradiça rangeu, e foi sugado num tranco para dentro da casa grande. Deu com a carcaça no gelo das pratarias, baixelas da mesa posta para um jantar de calendário incerto. Botou reparo no pedaço de varanda que se via da janela, e assim ficou tempo imenso até que um ruído de saias o trouxe, em saltos mortais, às anáguas e espartilhos da sinhazinha que ia entrando. E varava livremente as camadas todas de pano e de castidade, mas num remorso de incesto que não cabia explicar. Uma ancestral de si, ali a pleno frescor, quem não garante que era? Sinhazinha de respeito e jeitos misteriosos, empunhando livro e leque, o olhar mirando o caminho da entrada da propriedade.

De novo o efeito centrífuga, sem chance de escapatória. Foi sendo puxado de costas rumo ao carrilhão de mogno. Por entre molas e engrenagens, laçou o ponteiro de minutos e ali ficou bem montado até que o das horas viesse e o levasse são e salvo ao XII do mostrador. Um cheiro de óleo de máquina se misturou ao de tinta, no instante em que se deu conta que estava no quadro da sala, de moldura quebradiça, herança do engenho velho. Retrato de gente austera, ele era o homem da tela, e em frente a ele outro homem, paleta e pincel nas mãos, dava os últimos retoques. Um passo atrás para olhar melhor o todo da obra acabada. Vira a cabeça pra um lado, vira a cabeça pro outro. Falta um tonzinho de amarelo queimado na testa, acima dos cílios. Agora sim, a assinatura. Nome e data sobre tela. Ali ficará, imóvel, pelos séculos dos séculos, olhando quem se achegar à sala da grande sede da Fazenda Santa Lúcia.

* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).



Um comentário:

  1. Começou como sonho e terminou como pesadelo. De vivente passou a imagem de uma tela. Narrativa alucinante, na qual os rumos vão se alternando e pregando o leitor na leitura.

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