terça-feira, 27 de agosto de 2013

Espantoso e atemorizador

A figura de Benvenuto Cellini causa espanto e admiração nas pessoas que tomam conhecimento tanto da sua vida, aventurosa e marginal, quanto de sua obra, magnífica e imortal. É tão, digamos, “exagerada”, que se não houvesse sua autobiografia, intitulada “Vita”, em que confessa e descreve em detalhes, de forma inusitada pela crueza das descrições, não apenas seus êxitos artísticos, mas seus erros, aventuras (inclusive amorosas) e inúmeros crimes – tanto os homicídios que cometeu, quanto os furtos, roubos e fraudes que perpetrou – acharíamos, quase meio milênio após seu nascimento, que se tratou de personagem de ficção. E mais, daqueles que seu criador exagerou na dose, carregou nas tintas, tornando-o mais cruel e feroz do que o mais maldoso dos homens possa ser.

É impossível que uma única pessoa consiga, mesmo que escreva sua biografia em vários volumes, esgotar o assunto ao relatar sua trajetória. Como também é impossível escrever a seu respeito com neutralidade, sem fazer juízo de valor. Li uma quantidade enorme de textos sobre ele e até o momento não consegui chegar a qualquer conclusão. Não sei se a classificação mais aproximada de quem se tratou de fato é a de gênio ou de louco furioso. Se de anjo, capaz de produzir, com a magia das mãos, obras de arte sublimes, inigualáveis, que beiram à perfeição ou se demônio, feroz e sanguinário, com  vaidade sem limites que raiava à autodeificação. Se de magnífico artista, na melhor acepção do termo ou se perigoso bandido, cuja presença em sociedade era sinônimo de permanente perigo. Sou tentado a classificá-lo nos dois extremos.

As várias enciclopédias, dada até a natureza desse tipo de publicação, focalizam, preferencialmente, sua obra, à prova de reparos. Citam, esporadicamente, em um ou dois parágrafos se tanto, suas ações criminosas que, no entanto, passam batidas e que o leitor desatento sequer presta atenção. Algumas sequer mencionam esse aspecto. Provavelmente, consideram-no irrelevante. Mas seria mesmo? Creio que não!

Um dos melhores trabalhos que li sobre essa assombrosa figura (tomando, aqui, a palavra “assombro” em ambos os sentidos, tanto no positivo, que se refere à sua genialidade artística, quanto no negativo, o da sua propensão para o mal), não é nenhuma biografia, embora haja muitas excelentes, inclusive traduzidas para o português. Trata-se de uma tese universitária, de autoria de Laís Freitas de Souza, datada de 2010.

O referido trabalho acadêmico é de fim de curso, de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Literatura Italiana do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (Ufa!!!). Recomendo-lhes que o leiam. O texto é facilmente localizável na internet. Embora seu foco seja o literário (já que esse personagem polêmico e espantoso foi também escritor, autor não apenas da citada autobiografia, mas de outros dois livros, inclusive um de poesia), dedica alguns capítulos a informações e análises sobre o homem. O título da tese sugere, por si só, qual seu foco preferencial: “A autobiografia de Benvenuto Cellini no Brasil do século XX: subsídios para estudos de tradições e adaptações”. Reitero, é uma leitura que recomendo a quem queira se aprofundar na vida e na obra dessa figura que merece, mais do que ninguém, o rótulo de “excepcional”, no sentido de originalidade em qualquer aspecto que se a analise.

Dada a natureza deste espaço, dedicado, basicamente, à Literatura, interessa-me, particularmente, na tese de Laís Freitas de Souza, o Cellini escritor, o que tentarei abordar, posto que com a forma muito sucinta que o Literário exige, nos próximos dias. Destaco, todavia, este trecho da autora, bastante esclarecedor a propósito: “A ‘Vita’ (autobiografia) não é a única produção literária de Benvenuto Cellini. Temos ainda os ‘Trattati’ e as ‘Rime’. Os ‘Trattati’, como o próprio nome sugere, ficaram mais restritos ao campo das técnicas. Afinal, registram e descrevem processos nas áreas da escultura e da ourivesaria, servindo até os dias atuais nas escolas que tratam dessas artes. Já a sua produção em versos, reunida em suas ‘Rime’ é considerada pela grande maioria dos críticos um mero passatempo de Cellini, diminuindo sua relevância em relação à sua maior produção literária: a ‘Vita’”.

Uma das coisas que mais causam admiração (entre tantas outras) refere-se a onde e como esse personagem complexo e polêmico encontrou tempo para compor sua obra literária, tendo que fugir, praticamente sem tréguas, de ferozes e poderosos inimigos buscando vingança e, sobretudo, da justiça, por suas ações marginais, à margem das leis e dos bons costumes. Laís esclarece: “A decisão de Cellini de escrever sua autobiografia só veio em idade avançada; afinal, ‘Vita” foi escrita entre 1558 e 1566, quando o artista era quase sexagenário. O início da composição de suas memórias coincide com o período em que perde a proteção do Duque Cosme I e continua se envolvendo em brigas, que o levaram a questões judiciais e a gastos desnecessários.

Em outro trecho, Laís informa> “Um pouco antes de iniciar a escrita de suas memórias... Cellini teve que voltar à prisão, em 1556, sob diversas acusações... Foi nesse período que Benvenuto Cellini escreveu quinze sonetos que o crítico (Marziano Guglielminetti) chamou de ‘spazio interiore autentico’”.

Boa leitura.

O Editor

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2 comentários:

  1. Espantoso o biografado, e mais ainda sua fluência, Pedro, neste estranho personagem.

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  2. Obrigado, Mara. Faz um bem imenso à alma, principalmente em dias em que estamos carentes e com problemas muito chatos (como estou hoje), saber que alguém, generosa e amiga, no caso você, lê o que escrevemos e se manifesta a propósito, elogiando ou criticando, não importa. Neste momento, chego até a ouvir sua voz expressando palavras de simpatia e de ânimo. Você sabe que a considero grande amiga, mesmo sem que jamais tenhamos nos encontrado? Pois é. Você é, antes de tudo, humana, característica que está se tornando cada vez mais rara num mundo povoado por “sombras”, por máscaras, por números, por fantasmas.

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