domingo, 25 de agosto de 2013

A vida a sangue frio, o futebol como ato político

* Por Anna Lee


Ainda a Copa.

Arrisco-me novamente no assunto que, no momento, é de todos, mesmo daqueles que não têm qualquer conhecimento sobre futebol. O meu caso.

Pior. Insisto em evidenciar minha incapacidade de fazer poesia. Um leitor me advertiu sobre o texto da semana passada que tratava do futebol como meio de afirmação da identidade de uma nação, do Brasil especificamente. “Tá faltando poesia aqui”, disse-me ele.

Ponderei que jamais me propus a fazer poesia neste espaço e nem em qualquer outro, já que não sou poetisa, sequer pretendo me tornar uma, pelo simples fato de não conseguir ver poesia no mundo e, principalmente, por não ter competência para extrair poemas do lado desagradável da vida, de sua crueldade. A cada dia, um dia após o outro, experimento a vida a sangue frio. É disso que tiro meus escritos, respondi ao leitor, me desculpando por tê-lo desapontado e aconselhando-o a não me ler mais.

Estou eu aqui outra vez falando de Copa do Mundo sem poesia nenhuma. É inevitável. Sinto-me arrastada pelo turbilhão futebolístico.

Isso se dá, sobretudo em dia de jogo do Brasil. Aos primeiros raios do sol, uma brisa, contrariando a natureza refrescante das brisas, sopra um bafo quente. Prenúncio de que muito mais está por vir. Uma brisa que tem como futuro ser vento veloz, cada vez mais veloz, capaz de levantar poeira, transformar-se em vendaval e arrastar quem encontrar pela frente, bastando para isso o sujeito ser brasileiro.

Nestas horas, patriotismo não é uma questão que se coloca. Qualquer um é arrastado e pronto. Sem possibilidade de escolha, todos são levados pela onda de vento gigantesca que não é apenas quente como a brisa matinal que lhe deu origem. Fervilha e se faz rascunho do furacão, do auge que é atingido quando a bola bate no fundo da rede do adversário e o Galvão Bueno – então, o verdadeiro presidente do Brasil, eleito pelo monopólio de transmissão da Rede Globo – grita: “é do Brasiiiiiillllll!”.
 
Posso, por isso, entender que o filósofo alemão Peter Sloterdijk tenha ido às páginas de O Globo dizer que o futebol mudou definitivamente a Alemanha. Que, antes, sérios e constrangidos pelo passado nazista, os alemães, agora, redescobriram o orgulho em festas que tomam as ruas em dias de jogos da seleção.

Por outro lado, não posso, por isso, entender quando Sloterdijk diz: “O que vemos na Alemanha não é nacionalismo, mas patriotismo de lazer. O uso da bandeira não é político. É um símbolo da alegria do futebol”.

É certo que o termo “nacionalismo” carrega um peso – principalmente ao se tratar de Alemanha – na sua significação de “preferência pelo que é próprio da nação a que se pertence”.  Mais ainda quando referido como “exaltação das características e valores tradicionais, à qual em geral se associam a xenofobia e/ou racismo, além de uma vontade de isolamento econômico e cultural, como doutrina que subordina todos os problemas de política interna e externa ao desenvolvimento, à dominação hegemônica da nação”.

            Também é certo que o termo “patriotismo” usado como apenas “devoção à pátria”, ainda mais acoplado ao adjetivo “lazer”, cabe melhor em tempos de Copa do Mundo.

De qualquer forma, há que se considerar que os dois termos, nacionalismo e patriotismo, estão vinculados. O que é o nacionalismo senão o patriotismo levado às últimas conseqüências?

Por isso não dá para dizer que a agitação de bandeiras alemãs em festas que tomam as ruas em dias de jogos da seleção não seja um ato político. E isso vale para qualquer outra nação.

O uso da bandeira é sempre político. O uso de quaisquer símbolos nacionais é sempre político. Não fosse assim a primeira estrofe do hino alemão que falava na “Deutschland, Deutschland über alles” (“Alemanha, Alemanha acima de tudo”), não teria sido suprimida.

Foi suprimida porque a carga política do passado nazista lhe é inerente. E porque, numa hora de simples “patriotismo de lazer” pode originar um vento veloz, um vendaval, um furacão que, ao invés de levar a bola ao fundo da rede do adversário, arraste os alemães – incluindo os não patriotas – a um passado que deve permanecer como tal, senão esquecido, pelo menos num outro tempo bem distante do hoje.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.

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