quarta-feira, 31 de julho de 2013

“Vocês vão ter que me engolir!”

* Por Mara Narciso

O Brasil suou para vencer a Bolívia na Copa América por 3 a 1 em 29 de junho de 1997. Mário Jorge Lobo Zagallo, técnico de Seleção Brasileira fez aquele desabafo histórico. Tempos depois relembrou o recado que enviou para calar a desconfiança da torcida: “Eu botei para fora tudo aquilo que estava dentro da minha alma”. Alagoano de Maceió, nascido em 9 de agosto de 1931, o Velho Lobo deu outra dimensão ao verbo engolir. Por agora, nos embalos da vitória do Atlético Mineiro, Campeão 2013 da Taça Libertadores da América, relembrar Zagallo e sua garra faz parte do jogo.

Engolir é passar da boca ao estômago, sendo o mesmo que deglutir. Não é preciso dissecar uma garganta para entender que alimentos e situações podem ficar travados pelo caminho, sem chegar ao seu destino. O sistema anatômico pode estar perfeito, a largura e a motilidade podem não apresentar avarias, e, no entanto, a pessoa apresenta disfagia, o nome técnico para dificuldade de engolir. As causas podem ser múltiplas. É um pai castrador e autoritário, é um marido crítico e insatisfeito, é um chefe que vive irritado, é um filho que só dá dissabor, é uma injustiça da qual se foi vítima, ou algo misterioso e impalpável que está quase mostrando sua cara.

Pode-se ser vulnerável às próprias inseguranças, ficando-se à mercê das somatizações, que são situações psíquicas que se transformam em sintomas físicos, os caminhos que o frágil corpo encontra como saída. Os mistérios da mente transformam um órgão em perfeito estado anatômico em anárquico objeto disfuncional. Trava, aperta, embola, dói, não funciona. Se não são pessoas para serem engolidas – força de expressão -, são situações limite em que “só sinto no ar o momento/ em que o copo está cheio/ e não dá mais pra engolir/” (Grito de Alerta, Gonzaguinha). São aquelas vivências que explodem num momento relativamente pacífico, pois já viram esgotadas todas as tentativas de paz.

Antigamente, um mal conhecido pela alcunha de “bolo histérico”, (histerus - útero) era comum em mocinhas que se queixavam de um bolo na garganta que as impedia de comer. Noutras, a situação atingia um grau mais grave, e de bolo que barra o alimento, passava a vômito. Diante de uma situação obstrutiva, de ordem psíquica, vem a urgência de fuga para impedir um vexame público. Podia até emagrecer, e tal situação era difícil de ser compreendida e tratada.

A mente humana são vários mistérios, e coisas da emoção se manifestam fisicamente. Para afirmar tal diagnóstico – o sintoma tem fundo psicológico -, é preciso afastar causas orgânicas através de exames complementares. Há também os casos em que se sofre num silêncio dissimulado e sem protesto. Esse tipo de comportamento abortado causa tumores e úlceras, naquelas pessoas em que a força do algoz impossibilita qualquer reação. Sequestros e cárceres privados vindos a público recentemente provam como não são incomuns esses casos de opressão extrema.

Segundo o dicionário, engolir é sorver, tragar, consumir. Essa é a parte boa, é o comer por prazer. O alimento é transformado em nutriente, em força, em energia e bem estar. É o verbo conjugado várias vezes ao dia por toda a vida. É o alimentar-se para se nutrir. Ocorre para sempre ou quase, pois há patologias que podem impedir a alimentação pela vias naturais. Tem aqui adiante um sentido diferente para engolir: subverter, revolucionar. Seria numa guerra? Um país engole o outro, ou um adversário neutraliza e absorve o oponente? E ainda mais outro: transpor, ultrapassar num percurso. Está bem, nossa língua é rica em palavras e em sentidos diversos para as mesmas, mas a nossa mente amplia ainda mais esta lista. No sentido contrário há os insatisfeitos que se manifestam comendo sem parar, inclusive acordando de madrugada para ingerir alimentos.

Quem vomita diante de uma situação adversa, se envergonha da fraqueza de não conseguir enfrentar tal momento com serenidade. O seu oposto, o comer compulsivo, também constrange quem sofre desse mal. Os excessos em seus limites pedem discrição. De um modo ou de outro, as insatisfações estão muito ligadas ao ato de comer ou de não comer, de engolir ou de engasgar. O aparelho digestivo é um constante órgão de choque. É preciso consertar as mentes para não sofrer desses males.

Assim, ingerir alimentos e situações sugere saúde e força, ainda que, em casos extremos, precisem ser impostos aos gritos por heróis encurralados

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


2 comentários:

  1. Fisiológica ou figurativamente, temos que engolir, bem ou mal, muita coisa nessa vida...
    Já o seu texto, Mara, foi deliciosamente digerido. Muito bom. Abraços.

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    1. O verbo engolir é bem mais amplo e largo do as nossas goelas, como se dizia quando eu era menina. Obrigada, Marcelo, pela passagem e comentário simpático.

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