sábado, 27 de julho de 2013

Uma eleição que resume a História

As eleições, seja para o que for, guardadas as devidas proporções, são bastante parecidas. Notem bem: “parecem-se”, mas, óbvio, não são iguais. Não dá para se comparar, por exemplo, a escolha da diretoria de um clube de futebol de várzea, ou a de um centro acadêmico qualquer, ou de um grêmio estudantil de determinada escola, com a de presidente da República de algum país, não importa qual. Elas diferem tanto na importância quanto no processo. E aqui refiro-me a eleições “limpas”, em que não haja fraudes de nenhuma espécie. A semelhança a que me refiro está na cabala de votos, na tentativa dos candidatos de se elegerem.

O tema é bastante explorado em literatura, e em seus mais variados ângulos. Li, no mínimo, uns dez romances abordando o processo sucessório norte-americano, com tudo o que o cerca. A mesma coisa aconteceu em relação a escolhas de papas, processo muito mais fechado, com número bastante restrito de eleitores (no caso, os cardeais da Igreja) cuja votação é tão secreta que o escritor só pode imaginar como ocorre, sem a mínima possibilidade de comprovação de que seja mesmo da forma que descreve. Já participei de algumas eleições, ganhei algumas (raras), perdi outras (a maioria) e posso, portanto, discorrer sobre o assunto com certo conhecimento de causa. Não sou “expert” no assunto, claro, e essa nunca foi minha pretensão.

Conversei a respeito com vários escritores, alguns consagrados e campeões de venda, e levantei a questão se a eleição para alguma academia de letras não seria um bom assunto para um romance. A maioria entendeu que não, que isso forneceria, quando muito, enredo (e assim mesmo sem muito interesse) para um conto, se tanto. Alguns disseram que até valeria uma tentativa, mas que implicaria em muito trabalho. Essas opiniões valorizaram (pelo menos para mim), ainda mais a façanha de um escritor, que sempre reputei como dos maiores não somente da Literatura brasileira, mas mundial, que publicou, há umas quatro décadas, instigante romance a propósito, que acabo de reler. Refiro-me a Jorge Amado.

O que me espantou foi o fato de tantos ases literários não terem lido este livro (que ainda não identifiquei neste texto), já que não se trata de obra de nenhum principiante. Seu autor foi, até o surgimento deste fenômeno editorial, que é Paulo Coelho, o escritor brasileiro que mais livros havia vendido através do mundo, com traduções para dezenas de línguas. Concluo (talvez precipitadamente) que nem todos os que escrevem e publicam obras literárias são tão ávidos leitores como muitos (e eu também) supõem. Pior para eles. Quem não leu, não sabe o que perdeu.

O romance, que fiz tanto suspense em identificar, é “Farda, fardão, camisola de dormir”. Nele, Jorge Amado trata da eleição (rigorosamente fictícia), não de uma academia qualquer, um tanto obscura (sem desmerecer nenhuma delas, pois todas têm lá sua importância). O processo sucessório em tela desenrola-se na prestigiosa e superbadalada casa fundada por Machado de Assis. Isso mesmo, o enredo do romance gira em torno de uma eleição para uma das cadeiras vagas da Academia Brasileira de Letras. Foi muita ousadia de Jorge Amado. Não entendo a razão deste não ser um dos livros mais populares do autor. É uma obra-prima, principalmente de sugestão. É ótimo tanto no que foi escrito quanto, e principalmente, no que foi deixado apenas subentendido nas entrelinhas.

E embora todos os personagens (à exceção do então ditador Getúlio Vargas) sejam rigorosamente fictícios, criados, portanto, pela mente fértil do genial romancista, o modo de escolha da ABL (e de todas as academias de letras), e tudo o que o cerca, não o são. São rigorosamente reais. Recorde-se que, na ocasião, o caudilho gaúcho (e todos os puxa-sacos que o cercavam) eram simpatizantes das potências do Eixo, notadamente da Alemanha nazista, de Adolf Hitler, cujos exércitos pareciam imbatíveis, conquistando país após país. A imprensa era censurada e os porões da ditadura estavam repletos de presos políticos, submetidos às mais vexatórias, vis e covardes torturas.

E quem, na história de Jorge Amado, foi lançado como candidato à cadeira vaga da Academia? Foi justamente um militar. Até aí, nada demais. Mas além de vestir a farda, o postulante era homem de confiança do regime. E mais: era o grande responsável pelas inúmeras prisões de opositores do regime ou dos que eram somente suspeitos e, sobretudo, pela prática indiscriminada de tortura. Tratava-se do coronel Sampaio Pereira. E, suprassumo da ironia, essa figura brutal e tão temida buscava conquistar a cadeira justamente do mais ferrenho dos democratas da ABL, do poeta Antonio Bruno, “bom vivant”, apaixonado pela França e principalmente por Paris, ocupados, na ocasião, pelos nazistas, que o militar “venerava”.

Uma ala de acadêmicos, inconformada com uma candidatura tão ruim, e até então única, decidiu combater fogo com fogo. Lançou para a disputa da vaga outro militar, este um general reformado, Waldomiro Moreira, não muito benquisto pelo regime. Nenhum dos dois candidatos reunia méritos literários para postular vaga em sequer alguma academia obscura do interior, quanto mais na ABL. Bem, resumindo as coisas, o coronel morreu vítima de enfarte (quem quiser saber motivado pelo quê, que leia o romance). Restou, pois, um único postulante. Todavia, muito antes da eleição, o general assumiu atitudes antipáticas, autoritárias, palpitando a torto e a direito no funcionamento da Academia, como se já fosse membro pleno dela (o que não era). Granjeou, dessa forma, antipatias generalizadas.

Os acadêmicos resolveram, então, derrotá-lo. Mas havia um único meio previsto no estatuto da casa para isso: votando em branco ou anulando o voto, já que havia expirado o prazo para o lançamento de outra candidatura. Foi o que aconteceu. No dia da votação, o general estava em sua casa, ao pé do telefone, só aguardando o resultado, e com um big banquete de comemoração da vitória já preparado, esperando, somente, o desfecho da eleição que “estaria no papo”. Mas... não estava. Houve, isto sim, rara e inédita unanimidade de votos. Mas brancos e nulos. Quando o general Waldomiro soube disso, seu coração não resistiu. O militar caiu duro, enfartado, morto, assim como havia ocorrido com seu rival de farda, o coronel Sampaio Pereira. Ambos morreram por idêntica causa: excesso de vaidade e... ferida!

Querem saber mais a respeito do romance? Ora, ora, ora, comprem o livro e leiam!!! Certamente não se arrependerão. Nele, a pretexto de uma simples e rotineira eleição na Academia Brasileira de Letras, Jorge Amado traz à baila um dos períodos mais complicados, terríveis e tensos não apenas da história política brasileira, mas do mundo. Após a leitura, quem ainda não se convenceu, certamente se convencerá que o prestígio do autor – não só no Brasil, mas em tantas partes do mundo – foi mais do que merecido. Só os responsáveis pela atribuição do Prêmio Nobel de Literatura nunca conseguiram enxergar isso. O romance é fruto de talento puro! Ou melhor: é pura genialidade! Quem duvidar, confira.

Boa leitura.


O Editor

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Um comentário:

  1. Quando li não tinha a maturidade necessária para ver tudo isso. Devo ter voado alto do começo ao fim.

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