sexta-feira, 21 de junho de 2013

Divã no divã

* Por Marcelo Sguassábia

- Sim, pode falar.
- Por onde eu começo?
- Escolha o começo que lhe parecer mais interessante.
- Eu sou da área. Diria que dificilmente um profissional pode estar
mais ligado à seara freudiana do que eu.
- Não diga, é mesmo? Você é psicólogo, psicanalista, psicoterapeuta?
- Nada disso. Eu produzo divãs. Trabalho numa fábrica deles há mais
de vinte anos. Este divã mesmo, fui eu que fiz. Conheço cada um dos
meus divãs, centímetro por centímetro.
- Que peculiar. Jamais analisei um fabricante de divãs, e arrisco afirmar que
essa é uma experiência única nos anais da psicologia.
- Neste divã aqui está escrito "Diva" em baixo relevo, próximo a um
dos pés do móvel. É minha marca registrada de autoria. Basta levantar
um pouco ele do chão que já dá pra ver.
- Por que você escreveu "Diva" e não "Divã"?
- Tenho trauma de tio. Não de til, de tio mesmo. Irmão do meu pai, no
caso. Era pequeno e peguei ele na lavanderia de casa, um pouco mais
próximo da minha mãe do que seria conveniente a um cunhado com bons
modos e castas intenções.
- Fale-me mais sobre isso.
- Por favor, pulemos essa parte. Acho que hoje já estou razoavelmente
bem resolvido em relação a esse episódio.
- Será?
- Ah, sim. Depois que mamãe se foi, passei a administrar melhor o
trauma.
- E o meu é o primeiro divã em que você se deita ou já passou por
outros?
- Já deitei essa velha carcaça em cima de milhares de outros. Fazendo
os testes de controle de qualidade na fábrica e também fora dela,
testando a qualidade dos analistas.
- E eu? Já tenho uma avaliação preliminar?
- Ainda é cedo. Mas tive ótimas referências suas.
- Você é telegráfico. Parece que vai ser difícil arrancar coisas um
pouco mais subjetivas suas.
- Acertou em cheio. Sou mesmo muito assertivo no que digo e no que
pretendo fazer. E em cinquenta minutos de consulta dá para resolver
muita coisa. Quero dizer, algo de prático, e não ficar nesse blá-blá-
blá estéril.
- Por exemplo?
- Por exemplo, colocar os fantasmas para fora.
- Pois vamos a eles.
- O senhor me arruma uma faca?
- Faca?... serve esta?
- Serve sim.

(...)


- Espera um pouco, o que está fazendo? Para com isso, você está rasgando
todo o divã...
- É só uma incisão, estou libertando os fantasmas. Estou soltando
mamãe de sua longa prisão.
- Fique calmo, não me faça pedir ajuda.
- Vem, mamãe, vem... saudade, minha velha.
- Que horror, o que são esses ossos?
- Então, eu poderia explicar tudo direitinho, doutor. Mas acho que não precisa, concorda? Foram alguns anos procurando pelo número
de série do divã até encontrar o dono, que o vendeu para outro
analista, que o revendeu para o senhor...
- Não pode ser. Você acabou de falar que tinha superado o trauma.
- Eu precisava tranquilizá-lo para poder também ficar tranquilo e
fazer o que precisava ser feito. Agora, se me permite, eu e mamãe temos pressa. Se quiser um divã novo, temos vários modelos para pronta entrega. Quer ficar com o meu cartão?

         * Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
  

Um comentário:

  1. Um parentesco discreto com Psicose. Agrada, diverte e é absolutamente original. Mesmo que alguém ache que não.

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