domingo, 19 de maio de 2013


De como Juvenal se tornou um fenômeno

* Por Carlos Bozzo Junior

RESUMO Naná Vasconcelos, 68, pernambucano, negro, oito vezes melhor percussionista do mundo e vencedor de oito Grammy, viveu mais de 30 anos fora do Brasil. Seus fãs vão dos confrades na música ao cineasta italiano Bernardo Bertolucci. Considerado um fenômeno, Naná diz que a fama só importa em "cabeça de camarão".

Ninguém o chama de Juvenal, que oficialmente antecede o "de Holanda Vasconcelos".

O guitarrista Pat Metheny o chama de Doctor, e o percussionista indiano Trilok Gurtu, de Paxá. Por oito vezes, foi chamado pela revista "DownBeat" de o "melhor percussionista do mundo", em votação promovida entre críticos pela publicação norte-americana dedicada ao jazz. O cineasta italiano Bernardo Bertolucci não admite que o chamem de músico, mas sim de "A Música". Quando alguém o chama de "Mestre", rebate, humildemente: "Mestre está no céu"

O apelido pelo qual ele decidiu ser chamado foi dado pela mãe, Petronila, quando ainda moravam juntos no bairro Sítio Novo, em Olinda. "Ela foi encurtando de Juvenár' até chegar em Naná."

O pai de Naná Vasconcelos, Pierre, tocava manola --violão tenor de quatro cordas, amplificado-- na boate da sede do bloco Batutas de São José, no Recife. Aos 11 anos, o filho já queria ser percussionista. "Aperreei tanto batendo nas panelas e caçarolas de casa que ele me deu um bongô, umas maracas e um afoxé", recorda o músico, que procurou por trabalho apenas na primeira vez. Depois dela, diz ter sido sempre convidado.

Acatou o pai e, aos 12 anos, obteve autorização do Juizado de Menores para tocar na banda, com a condição de nunca descer do palco. "Tocávamos 45 minutos e parávamos 15, para o pessoal namorar. Eu ficava lá em cima, só olhando", conta Naná, que segue obedecendo à regra imposta pelo pai desde o primeiro dia de trabalho: "O que se via lá se deixava por lá".

O baile foi uma grande escola para o ritmista --nos anos 50 não se usava dizer percussionista--, que terminou o ginásio e saiu tocando para as pessoas dançarem, ao som de muito bolero, mambo e chá-chá-chá. Nunca frequentou escolas de música e, autodidata também para as escolhas literárias, lembra ter lido livros de Hermann Hesse e Carlos Castaneda.

Após a morte do pai, deixou a boate da sede do bloco. Em 1957, entrou para a Banda Municipal de Recife no lugar dele, trabalhando como arquivista e distribuindo partituras para os músicos, mas sem tocar. "Entendia que ritmista vinha depois do baterista, e isso me incomodava." Comprou uma bateria à prestação e começou a estudar, sem professor, de manhã, no camarim do teatro onde, na parte da tarde, a banda ensaiava.

BAMBU Música ele ouvia basicamente pelo rádio --sintonizado por uma antena sustentada por um bambu no telhado da casa--, e jazz era o que escutava na emissora A Voz da América. Eis que surgiu a bossa nova e, com ela, "Adriana", canção de Roberto Menescal e Lula Freire composta no embalo de "Take Five", de Dave Brubeck. O tema era novidade, um jazz diferente do tradicional, mas soava familiar ao garoto que adaptava para o samba o que ouvia pelo rádio, além de imitar o solo do baterista de Brubeck, Joe Morello.

Quando surgiu o primeiro festival de bossa nova de Pernambuco, Naná foi a um dos dois lugares onde, no Recife, os músicos se congregavam para oferecer e negociar seus serviços --os tradicionais "pontos"-- e ali, na rua do Imperador, foi informado de que precisavam de um baterista que tocasse "Adriana" e soubesse solar. Naná, 17, mostrou que sabia e terminou 1961 com os colegas tendo-o na conta de melhor baterista do ano.

Nos bastidores de um dos muitos programas de TV em que se apresentaria naquela época, Naná e outros três músicos conheceram um bailarino brasileiro que radicava em Portugal. No improviso, nasceu o Quarteto Yansã, arrebanhado com a finalidade de tentar a sorte em Lisboa, primeiro destino internacional do jovem músico.

A trupe, porém, deu com a cara na porta --o bailarino, que prometera ajuda, não estava na cidade. Rodavam a esmo por Lisboa quando, de repente, Naná ouviu: "Negão, o que você está fazendo aqui?". Era o cantor paulistano Agostinho dos Santos, o "Rouxinol", que havia gravado a trilha do filme "Orfeu do Carnaval".

Santos, que Naná conhecia de tocar na noite e na TV, também estava na pior: tinha enganado o comandante do navio no qual cantava e deu no pé, dizendo que precisava do passaporte (retido até o fim do cruzeiro) para ir comprar alguns dólares em terra.

Sem dólar nem trabalho, o cantor se uniu ao grupo. Juntos, fizeram vários shows, em que a presença de celebridades como o jogador Eusébio, do Benfica, era uma constante. Aproveitaram o reconhecimento e gravaram o disco "Agostinho dos Santos".

De volta ao Recife, em 1967, Naná foi à casa do compositor Capiba. Queria convencê-lo de que era o único músico capaz de tocar o maracatu por ele composto para representar Pernambuco no festival O Brasil Canta No Rio.

O evento não pagava transporte, alimentação nem hospedagem. Capiba indagou: "Meu filho, você conhece alguém lá no Rio de Janeiro?" "Conheeeeço", mentiu. "Tem lugar para ficar?" "Teeenho", rementiu. Ganhou do compositor as passagens de ida e volta. De madrugada, saindo para pegar o ônibus, ouviu da mãe a profecia: "Você não volta mais. Deus o abençoe", conta, os olhos marejados.

A hospedagem ele também descolou na esperteza. Aproveitando a tumultuada chegada ao hotel dos seis integrantes cegos do grupo Titulares do Ritmo, se fez passar por membro do "entourage" e conseguiu um quarto.

A música de Capiba não ganhou o festival, mas Naná ganhou um amigo e um trabalho. Pelas mãos de Geraldo Azevedo foi a uma festa na casa de Milton Nascimento e, tocando em suas panelas, encantou-o. Foi convidado para gravar com o mineiro. A pegada percussiva africana de "Sentinela" é dele.

Após participar de grupos de MPB como O Som Imaginário, A Tribo e Sagrada Família, foi convidado pelo saxofonista argentino Gato Barbieri para shows em Buenos Aires. Lá se aprimorou no berimbau, que já vinha experimentando. O instrumento, que deu ao grupo de Barbieri uma nota exótica, ganhou, nas mãos de Naná, nova reputação --além de uma sonoridade peculiar, que o percussionista atribui ao LSD.

"Foi bom tomar. Nunca tomei sozinho, mas em companhia de meus instrumentos." Gosta de contar que, nessas ocasiões, deixava a casa limpa e provida de alimentos e esperava o efeito bater, deixando os instrumentos por perto. "Quando a reação vinha, a primeira coisa que eu queria era tocar. Minha sensibilidade aflorava, e eu ficava concentrado só na música." Hoje, aprecia apenas um bom vinho ou uma boa cachaça, mas nunca antes de se apresentar.

Foi com Gato Barbieri que chegou a Nova York. Lá, morou por cerca de um ano com o cineasta Glauber Rocha, que, em tom jocoso, assim resumia o novo som que o pernambucano tirava do berimbau: "Você fodeu com os baianos"

Enquanto no loft convivia com colegas de cinema de Glauber, como Bertolucci e Jean-Luc Godard, fora dele o músico ganhava fama própria, tocando o que seu anfitrião chamava "jazz do Terceiro Mundo", no icônico Village Vanguard. A imprensa referia-se a Naná como "The Jungle Man", por seu exotismo e pela maneira surpreendente de tocar. Seus dois minutos de solo rendiam intermináveis aplausos e assobios.

Naná com Gato Barbieri consolidava, ao lado de Airto Moreira com Miles Davis, o sucesso da percussão brasileira pelo mundo. Em 1970, saiu em turnê com Barbieri pela Europa e resolveu ficar.

Escolheu Paris para fixar residência e gravar o primeiro de seus mais de 30 discos, "Africadeus" (1971), além de inúmeras trilhas sonoras para cinema, teatro e balé. A capital francesa foi a plataforma inicial para inúmeras parcerias que faria com músicos superlativos nas três décadas seguintes.

Com os multi-instrumentistas Don Cherry ("um dos maiores músicos que conheci, um conservatório ambulante") e Collin Walcott, formou um dos grupos pioneiros da "world music", o Codona, que existiu entre 1978 e 1982. Ao lado de Egberto Gismonti, gravou, em Oslo, em 1976, o mítico disco "Dança das Cabeças".

No Japão, para onde tinha ido em turnê com Gismonti, conheceu Pat Metheny, com quem tocou e gravou e que introduziu à MPB de Milton Nascimento e Toninho Horta. Fez três apresentações com Miles Davis, mas não quis participar do trabalho seguinte do trompetista --o disco era "Tutu" (1986). Optou por continuar tocando com Jack DeJohnette --que, diz, justificando a escolha, não é baterista: "É um músico que toca bateria".

Após viver fora do Brasil por quase metade de sua vida --além de cinco anos em Paris, passou 27 nos EUA--, há 13 anos voltou a fixar-se no Recife. Sua produtora e atual mulher, Patrícia, é também sua sobrinha. Com ela, teve sua segunda filha, Luz Morena, 13 --Jasmim Azul, 18, nasceu de outro relacionamento--, que conhece o parentesco entre os pais. Naná não vê nada disso como problema.

"Sou muito aberto", diz, frisando que, por isso, "muita gente" pensa que ele é gay ou bissexual. "Sou casado e nunca dei meu alterador de fava', mas não tenho nada contra. Adoro meu lado feminino e gosto muito de mulher."

Em 2007, um susto o fez passar a tocar, a cada show, com mais rigor e intensidade. Rogério Holanda, cirurgião cardiovascular e torácico, estava de plantão no hospital onde Naná deu entrada, com falta de ar. "Identificamos um quadro chamado pneumotórax hipertensivo. Uma bolha de ar preenche o espaço que é do pulmão, causando um mal-estar muito grande e podendo levar à morte em pouco tempo", diz o médico, que o salvou retirando um pedaço do pulmão lesionado.

Sua recuperação foi excelente: dois meses depois estava regendo, como tem feito nos últimos 12 Carnavais, o enorme grupo com mais de 500 batuqueiros oriundos de diferentes nações de maracatu.

Unir as nações, além de um trabalho diplomático, é muito técnico. Cada um desses grupos tem seu "baque" (batida), seu jeito de afinar o tambor e de levar o ritmo. Algumas nações são mais lentas, outras, mais aceleradas e, quando se misturam, e a emoção bate forte, o som, no dizer dos músicos, "asfra", dá errado. Naná sabe disso e dá o ajuste. É algo como reunir as escolas de samba e fazer com que toquem juntas, respeitando suas rixas e rivalidades. Ele assim faz.

A carreira consistente, pontuada por premiações estrangeiras --só Grammy, foram oito--, aplicou ao nome de Naná o epíteto "fenômeno". Ele recusa, dizendo que fama "é besteira". " Ela está só na cabeça, na cabeça de camarão".

A humildade é marca notória do músico; a ela o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), soma outra: "Naná é uma referência não só pelo seu talento mas pela sua generosidade". No último Carnaval, o músico recebeu das mãos de Campos a mais importante comenda estadual, a Medalha da Ordem do Mérito dos Guararapes, no grau Grã-Cruz. "Ele mudou a vida de muitos jovens pobres da periferia, que viram nele a oportunidade de crescer e desenvolver seus talentos."

Os adjetivos parecem não grudar em Naná. Sua receita de criatividade, diz, é pensar que nada sabe. E explica com o que chama de "as quatro sabedorias africanas".

"A primeira diz que a pessoa sabe, mas não sabe que sabe. Para essa pessoa, damos uma força. A segunda é a da pessoa que não sabe, mas sabe que não sabe. Ela é consciente, então não atrapalha. Essa nós abraçamos. A terceira sabedoria refere-se àquele que não sabe, mas acha e diz que sabe. Esse tipo se evita. A quarta sabedoria é a daquele que sabe, sabe que sabe, e nós o seguimos. Não concordo muito com isso; acho que cada vez mais, a gente sabe menos."

É hora de o Brasil saber de Naná Vasconcelos.

* Crítico musical

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