terça-feira, 30 de abril de 2013


Tradições contradições 84

* Por Walter da Silva

Ela está ali deitada faz alguns dias. Cumpre sua sina genética ditada pela natureza. Sua graça é Maricota. A raça, de porte pequeno, contrasta com um ar de arrogância, como se fosse gente. Mas é melhor do que. Faz parte dos galináceos, a fêmea dos galos. Sua correspondente humana também assim se chama, apenas porque varia de parceiros amorosos constantemente. Maricota se dá ao cuidado natural de permanecer assim por dias e dias, talvez vinte e dois. Dali daquela chocadeira ela só sai para cumprir suas necessidades básicas. Observo às vezes pasmo – no início – por vezes encantado com o cuidado prestado por ela, futura mamãe, nesses tantos dias de expectativa à sua futura prole.

Para observá-la, faço-o discretamente de modo que não a assuste em seu fado materno. Evito acender as luzes do local, isto porque ela resolveu chocar num cantinho escuro de uma das salas da casa, sobre uma velha e usada colcha de chenile. Não houve como transportá-la dali para o galinheiro, tarde demais. Resolvi mantê-la ali calidamente e longe de predadores. Por que me entusiasmo? Explico: quando menino, a mãe criava galinhas, mas não permitia que os dois filhos fossem até o galinheiro. Até hoje me pergunto por quê. E o que fiz é uma forma de me redimir desse tempo distante e trazê-lo de volta, guardadas as devidas proporções e causalidade. E minha mãe as criava em grande quantidade.

Agora cabe explicar as principais motivações que me conduziram a ser criador de galinhas. A primeira é que, habituado a consumir somente ovo de capoeira, percebi que podia reunir dois prazeres: ouvir o canto dos galos e poupar reais na compra do produto. Há naturalmente outra razão para isso, que consiste no prazer de sair à procura dos ovos recém-liberados. Curioso é que, quando botam os ovos, elas cantam no desenlace, quase exatamente a mesma melodia de uma marchinha de carnaval: “cócócócócócóróooooooooo, o galo tem saudade da galinha carijó”. É uma semicolcheia e uma nota longa. Se vocês quiserem e fizerem questão dos detalhes da produção, sugiro que procurem meu velho amigo, aposentado da TVU, Hugo Martins, que sabe mais de frevo do que eu de galinhas.

Pois muito bem. Nesta manhã saí à procura de Joaninha, de outra raça e bem obesa, cujo andar balouçante, indica que tem se alimentado demais. Ela estava escondida num lugar distante e ermo da área. E foi ali que andou depositando seus ovos. Outro dia, num domingo, vi a Joaninha procurar a tépida chocadeira da amiga Maricota, na esperança de lá depositar seu belo óvulo cor de marfim. Ah, teria imaginado a futura mamãe: aqui neste espaço tem ordem e progresso. E iniciou um choro irritante e declaradamente antagônico à amiga Joaninha.

Eu, atônito e deslumbrado com a circunstância, me houve por bem esperar para assistir ao desenlace. Quando a gorducha notou que a pequenina não a queria por perto, deu um salto meio estranho e liberou no chão seu frágil e proteico produto.

Da pequena altura de onde pulou, ainda pude aproveitar o alimento, quebrado, mas não de todo perdido. Levei-o à cozinha e o pus dentro de um pequeno recipiente apropriado. Interessantes as aves dessa espécie. Voam, cantam, caminham muito e prestam um grande serviço à casa onde se instalam. Cuidados há que serem tomados, como por exemplo, salvar o produto da predação dos pequenos répteis ou roedores que habitam por aqui. Preás, timbus, calangos e camaleões e outros que não consigo identificar. Não sei, todavia, se lagartixas apreciam ovos de galinhas. Sabe como é, na hora da fome, vale tudo. A mata atlântica propicia essa miscelânea de animais que, se não domesticados, ao menos conseguem sobreviver em meio ao solo rico em larvas, minhocas e insetos mil.

Sem esquecer que fezes de galináceos são aproveitadas para o adubo de plantas. Devo dizer, entretanto, que o cuidado de começar com uma meia dúzia de aves é a maneira mais prudente. A reprodução é bastante acelerada e, para cada grupo de ovos, tem-se uma perda mínima de um ou dois que não conseguiram a proeza de se transformar em pintinhos. O que mais me interessa a mim pessoalmente, não é o clímax, o nascimento. Esse longo e natural processo de eclosão da vida animal é que me deixa cada vez mais convicto de que Darwin tinha mesmo razão.

Os dois galos presentes no território já puderam estabelecer uma perfeita harmonia de convivência, isto porque cada um tem sua companheira. Um não invade a privacidade aviária do outro. Por falar em galo cantador, Don Alejandro é o nome que dei ao pequeno e ao de porte maior, por ser de compleição meio estranha, resolvi chamá-lo de Travecock, pela sua grande semelhança com um famoso desfilante de velhos carnavais.


Todo esse esforço poderá não conduzir a nenhum sucesso, mas ao menos fornece duas boas fontes de satisfação: a medida exata de proteína animal que um velho necessita e o prazer de ouvir de madrugada, antes do “Cooper”, o orgulhoso e sonoro canto dos galos. Se toda essa aconchambrança significa algo de útil ou não, só o tempo dirá. Na pior das hipóteses, proporciona ao morador um velho e nostálgico prazer maternal: dá ração às galinhas sem nenhum constrangimento ou proposital senso de ridículo.

Camaragibe-PE, 24/4/2013

* Escritor

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