sábado, 20 de abril de 2013


Arte, verdade e política

* Por Harold Pinter                                                                                                                           
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                
 
Não há distinções sólidas entre o que é real e o que é irreal, nem entre o que é verdadeiro e o que é falso. Uma coisa não é necessariamente verdadeira ou falsa; pode ser simultaneamente verdadeira e falsa.”

Creio que estas afirmações ainda fazem sentido e ainda se aplicam à exploração da realidade através da arte. Portanto, como escritor eu subscrevo-as mas como cidadão não posso fazê-lo. Como cidadão devo perguntar: O que é verdadeiro? O que é falso?

A verdade no teatro é eternamente esquiva. Nunca a encontramos de fato, mas a sua busca é obrigatória. A busca é claramente aquilo que comanda o nosso esforço. A busca é a tarefa que nos incumbe. A maior parte das vezes deparamos com a verdade no meio da escuridão, colidindo com ela ou apenas lhe vislumbrando uma imagem ou uma forma que parecem corresponder à verdade, sem muitas vezes nos apercebermos de que tal aconteceu. Mas a verdade real é que uma única verdade é coisa que não existe na arte dramática. Existem muitas. Essas verdades desafiam-se umas às outras, afastam-se umas das outras, refletem-se umas nas outras, ignoram-se umas às outras, provocam-se umas às outras, são cegas umas para as outras. Às vezes, sentimos que temos na mão a verdade de um momento, e depois ela esvai-se por entre os dedos e perdemo-la.

Já me perguntaram muitas vezes como é que as minhas peças de teatro aparecem. Não sei dizê-lo. Nem jamais seria capaz de resumir as minhas peças, a não ser para dizer eis aqui o que se passou. Eis o que eles disseram. Eis o que eles fizeram.

A maior parte das peças nasce de uma frase, de uma palavra ou de uma imagem. A palavra primeiro, muitas vezes seguida da imagem. Vou dar dois exemplos de duas frases que me vieram ao espírito inesperadamente, seguidas de uma imagem que eu próprio depois segui.
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As peças são The Homecoming e Old Times. A primeira fala de The Homecoming é “O que é que tu fizeste à tesoura?” A primeira fala de Old Times é “Escuro”

Num caso como no outro eu não tinha quaisquer outras indicações.

No primeiro caso é óbvio que alguém andava à procura de uma tesoura e estava a perguntar por ela a outra pessoa que provavelmente suspeitava que a tivesse roubado. Mas fosse como fosse, eu sabia que a pessoa a quem a pergunta se dirigia se estava nas tintas para a tesoura ou também para quem lhe fez a pergunta.

“Escuro” considerei que se trataria da descrição do cabelo de alguém, do cabelo de uma mulher, e de que era a resposta a uma pergunta. Em ambos os casos senti-me obrigado a desenvolver o assunto. Isto passou-se visualmente, uma lenta transição, uma passagem da sombra para a luz.

Eu começo sempre uma peça por chamar às personagens A, B e C.

Na peça que veio a chamar-se The Homecoming vi um homem entrar numa sala austera e fazer a sua pergunta a um homem mais novo sentado num feio sofá a ler um jornal de corridas. Não sei como, mas suspeitei que A era um pai e que B era o filho dele, mas não tinha provas. Mas isto confirmou-se pouco tempo depois quando B (que se veio a chamar Lenny) diz a A (mais tarde, Max), “Papai, importas-te que mude de assunto? Quero-te perguntar uma coisa. O que é que nós comemos ao jantar, como é que se chama? Que nome é que lhe dás? Por que é que não compras um cão? Tu és um cozinheiro para cães. Sinceramente. Tu pensas que estás cozinhando para uma data de cães.” Portanto, uma vez que B chama Papai a A parece razoável admitir que eles eram pai e filho. A era também evidentemente cozinheiro e a sua cozinha parecia não ser muito conceituada. Queria isto dizer que não havia uma mãe? Eu não sabia. Mas, tal como nessa altura eu disse a mim mesmo, os nossos começos nunca conhecem os nossos fins.

“Escuro.” Uma grande janela. Céu de tarde. Um homem, A (depois chamado Deeley), e uma mulher (depois chamada Kate), sentados com copos. “Gorda ou magra?” pergunta o homem. De quem é que eles estão falando? Mas então vejo, de pé, junto da janela, uma mulher, C (depois chamada Anna), em diferentes condições de luz, de costas para eles; tem o cabelo escuro.

É um momento estranho aquele em que se criam as personagens que até então não conheciam a existência. O que vem depois é caprichoso, incerto, alucinatório até, embora por vezes possa ser uma avalanche imparável. A posição do autor é bizarra. Em certo sentido, ele não é bem recebido pelas personagens. As personagens resistem-lhe, não são de convivência fácil, é impossível defini-las. Claro que não lhes podemos dar ordens. Até certo ponto, jogamos com elas um jogo infindável, um jogo do gato e do rato, da cabra cega, ou das escondidas. Mas por fim descobrimos que temos nas mãos pessoas de carne e osso, pessoas com uma vontade e uma sensibilidade próprias, constituídas por componentes que não podemos alterar, manipular ou distorcer.

Assim, a linguagem na arte torna-se uma questão altamente ambígua, uma areia movediça, um trampolim, um lago gelado que em qualquer altura pode ceder debaixo de nós, o autor.

Mas, como já disse, a busca da verdade nunca pode parar. Não pode ser suspensa, não pode ser adiada. Tem de ser encarada ali mesmo e no momento.

O teatro político apresenta um conjunto diferente de problemas. O sermão deve ser evitado a todo o custo. A objetividade é essencial. Deve deixar-se as personagens respirar o seu próprio ar à sua vontade. O autor não pode limitá-las nem constringi-las para satisfazer o seu gosto, a sua disposição, os seus preconceitos. Tem de estar preparado para as abordar de grande número de ângulos, de uma gama completa e imparcial de perspectivas diferentes, surpreendê-las, talvez ocasionalmente, mas dar-lhes, contudo, a liberdade de escolherem o seu próprio caminho. Isto nem sempre funciona. E a sátira política, claro, não obedece a nenhum destes preceitos, na realidade faz exatamente o contrário, o que é a sua função.

Na minha peça The Birthday Party parece-me que dou azo a uma completa gama de opções para operar numa densa floresta de possibilidades antes de finalmente me concentrar num ato de submissão.

Mountain Language não pretende tal gama de operação. Tudo aí é brutal, curto e feio. Mas os soldados da peça tiram algum gozo da situação. Por vezes esquecemo-nos de que os torturadores facilmente se aborrecem. Precisam de algum riso para manterem a moral alta. Isto já foi confirmado, claro, pelos acontecimentos de Abu Ghraib em Bagdá. Mountain Language tem a duração de 20 minutos, mas podia continuar hora após hora, hora após hora, repetindo o mesmo esquema uma e outra vez, durante horas e horas.

Ashes to Ashes, por outro lado, parece-me acontecer debaixo de água. Uma mulher  afogando-se, a sua mão que se estende para fora por entre as ondas, desaparecendo da vista, tentando alcançar os outros mas não encontrando aí ninguém, quer fora quer dentro da água, encontrando apenas sombras, reflexos, flutuando; a mulher uma figura perdida numa paisagem que se afunda, uma mulher incapaz de escapar ao destino que parecia ser apenas o dos outros.

Mas como eles morreram, ela tem de morrer também.

A linguagem política, tal como é usada pelos políticos, não se aventura neste tipo de território, uma vez que a maioria dos políticos, a acreditar nos elementos de que dispomos, não estão interessados na verdade mas no poder e na manutenção desse poder. Para manter esse poder é essencial que as pessoas permaneçam na ignorância, que vivam na ignorância da verdade, mesmo da verdade das suas próprias vidas. O que nos rodeia, pois, é um vasto tecido de mentiras de que nos alimentamos.

Como toda a gente aqui sabe, a justificação para a invasão do Iraque foi a de que Saddam Hussein possuía um arsenal altamente perigoso de armas de destruição maciça, algumas das quais podiam ser disparadas em 45 minutos, provocando uma terrível destruição. Garantiram-nos que isto era verdade. Isto não era verdade. Disseram-nos que o Iraque tinha relações com a Al Quaeda e que partilhava de responsabilidade pelas atrocidades de Nova Iorque de 11 de Setembro de 2001. Garantiram-nos que o Iraque ameaçava a segurança mundial. Garantiram-nos que isto era verdade. Isto não era verdade.

A verdade é totalmente diferente. A verdade tem a ver com a maneira como os Estados Unidos entendem o seu papel no mundo e com a maneira como decidem encarná-lo.

Mas antes de voltar ao presente gostaria de lançar um olhar ao passado recente; refiro-me à política externa dos Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Creio que é para nós um imperativo submeter este período a pelo menos uma espécie de escrutínio, mesmo que limitado pelo tempo de que aqui dispomos.

Toda a gente sabe o que aconteceu na União Soviética e em toda a Europa de Leste durante o período posterior à Guerra: a brutalidade sistemática, as atrocidades generalizadas, a cruel supressão da liberdade de pensamento. Tudo isto foi plenamente documentado e provado.

Mas a minha discórdia aqui é esta: no mesmo período, os crimes dos Estados Unidos só foram registrados muito superficialmente, e muito menos documentados, para não dizer assumidos, e muito menos reconhecidos como crimes. Parece-me que isto tem de ser abordado e que a verdade tem uma importância considerável para o mundo tal como ele está hoje. Embora limitada até certo ponto pela existência da União Soviética, as ações dos Estados Unidos por esse mundo fora deixaram bem claro que eles concluíram que tinham carta branca para fazer o que muito bem entendessem.

A invasão direta de um estado soberano nunca foi de fato o método favorito dos Estados Unidos. No geral, preferiram aquilo que já descreveram como «conflito de baixa intensidade». Conflito de baixa intensidade significa que morrem milhares de pessoas mas mais lentamente do que se lançássemos uma bomba sobre eles de uma só vez. Significa que se contamina o coração do país, que se instila um tumor maligno e se observa a gangrena a desenvolver-se. Quando o povo é submetido - ou espancado até à morte - o que resulta na mesma coisa - e os nosso próprios amigos, os militares e as grandes empresas se sentam confortavelmente na cadeira do poder, vamos à frente das câmaras dizer que a democracia prevaleceu. Isto era um lugar comum na política externa dos Estados Unidos nos anos a que me refiro.

A tragédia da Nicarágua foi um caso altamente significativo. Se decidi evocá-lo aqui foi porque ele ilustra de maneira convincente a opinião da América sobre o seu papel no mundo, então como agora.

Eu estive presente numa reunião na Embaixada dos Estados Unidos em Londres nos fins dos anos 80.

O Congresso dos Estados Unidos preparava-se para aprovar o envio de mais dinheiro para os Contras na sua campanha contra o estado da Nicarágua. Eu era membro de uma delegação em representação da Nicarágua, mas o elemento mais importante desta delegação era um tal Padre John Metcalf. O líder da delegação dos Estados Unidos era Raymond Seitz (então o número dois do embaixador e mais tarde ele próprio embaixador). O Padre Metcalf disse: “Tenho a meu cargo uma paróquia no norte da Nicarágua. Os meus paroquianos construíram uma escola, um centro de saúde, um centro cultural. Temos vivido em paz. Há alguns meses uma força dos Contras atacou a paróquia. Destruíram tudo: a escola, o centro de saúde, o centro cultural. Violaram enfermeiras e professoras, assassinaram médicos, tudo da maneira mais brutal. Comportaram-se como selvagens. Por favor, mande que o governo dos Estados Unidos retire o seu apoio a estas chocantes atividades terroristas.”

Raymond Seitz era conhecido como pessoa racional, responsável, experiente e bem informado. Era muito respeitado nos círculos diplomáticos. Ouviu, fez uma pausa e depois falou em tom algo grave: “Padre,” disse ele, “deixe-me dizer-lhe uma coisa. Na guerra, os inocentes sempre sofrem.” Seguiu-se um silêncio gélido. Ficamos olhando para ele. Ele nem pestanejou.

Os inocentes, de fato, sempre sofrem.

Por fim, alguém disse: “Mas neste caso, «os inocentes» foram vítimas de horríveis atrocidades apoiadas pelo seu governo, entre muitos outros. Se o Congresso aprovar mais subsídios para os Contras vai haver mais atrocidades deste tipo. Não é assim? O seu governo não é então culpado de apoiar atos de assassínio e destruição sobre cidadãos de um estado soberano?”

Seitz ficou imperturbável. “Não concordo que os fatos tal como nos foram apresentados corroborem as vossas afirmações,” disse ele.

Quando íamos saindo da Embaixada, um conselheiro dos Estados Unidos disse-me que ele gostava das minhas peças. Não respondi.

Devo recordar-vos que nessa altura o Presidente Reagan fez a seguinte declaração: «Os Contras são o equivalente moral dos nossos Pais Fundadores.»

Os Estados Unidos apoiaram a brutal ditadura de Somoza na Nicarágua durante 40 anos. O povo nicaraguense, liderado pelos Sandinistas, subverteu este regime em 1979, uma revolução popular emocionante.

Os Sandinistas não eram perfeitos. Tinham a sua quota-parte de arrogância, e a sua filosofia política continha inúmeros elementos contraditórios. Mas eram inteligentes, racionais e civilizados. Começaram a estabelecer uma sociedade pluralista, estável e decente. A pena de morte foi abolida. Centenas de milhares de camponeses empobrecidos e miseráveis foram resgatados da morte. Mais de cem mil famílias receberam títulos de propriedade de terras. Construíram-se duas mil escolas. Uma campanha de alfabetização a todos os títulos notável reduziu a taxa de analfabetismo para baixo dos 15%. Foi estabelecida a educação gratuita e um serviço de saúde também gratuito. A mortalidade infantil baixou em um terço. A poliomielite foi erradicada.

Os Estados Unidos denunciaram estas realizações como subversão marxista/leninista. Aos olhos do governo dos Estados Unidos, a Nicarágua estava dando um mau exemplo. Se se deixasse que a Nicarágua estabelecesse normas básicas de justiça social e econômica, se os deixassem elevar os padrões de cuidados de saúde e de educação e conquistar uma unidade social e uma dignidade nacional, os países vizinhos iriam fazer as mesmas perguntas e as mesmas coisas. Havia evidentemente nessa altura uma feroz resistência ao status quo em El Salvador.

Já falei acima de uma «trama de mentiras» que nos rodeia. O Presidente Reagan descrevia geralmente a Nicarágua como uma «masmorra totalitária». Isto era geralmente considerado pelos media e, claro, pelo governo britânico como um comentário preciso e justo. Mas não havia de fato nenhum registro de esquadrões da morte sob o regime sandinista. Não havia registro de tortura. Não havia registro de brutalidade sistemática militar ou oficial. Nunca nenhum padre foi assassinado na Nicarágua. Havia de fato três padres no governo, dois jesuítas e um missionário da Sociedade de Maryknoll. As masmorras totalitárias eram realmente na vizinhança, em El Salvador e na Guatemala. Os Estados Unidos tinham derrubado o governo democraticamente eleito da Guatemala em 1954 e calcula-se em mais de 200.000 pessoas vítimas das sucessivas ditaduras militares.

Seis dos mais distintos jesuítas do mundo foram traiçoeiramente assassinados na Universidade da América Central em San Salvador em 1989 por um batalhão do regimento Alcatl treinado em Fort Benning, Geórgia, USA. Aquele homem extraordinariamente corajoso, o Arcebispo Romero, foi assassinado quando dizia missa. Calcula-se que foram mortas 75.000 pessoas. Por que foram elas mortas? Foram mortas porque acreditavam que uma vida melhor era possível e devia ser alcançada. Essa crença imediatamente as rotulava de comunistas. Elas morreram porque ousaram pôr em causa o status quo, o infinito horizonte de pobreza, doença, degradação e opressão que foram os seus únicos direitos adquiridos à nascença.

Por fim os Estados Unidos derrubaram o regime sandinista. Isso levou alguns anos e uma resistência considerável, mas uma cruel perseguição econômica e 30.000 mortos minaram finalmente o espírito do povo nicaraguense. Estavam exaustos e mais uma vez empobrecidos e miseráveis. Voltaram os cassinos. A educação e saúde gratuitos acabaram. Os grandes negócios regressaram com uma vingança. A «democracia» tinha prevalecido.

Mas esta «política» não se limitava de modo nenhum à América Central. Era usada por todo o mundo. Era uma coisa sem fim. E é como se nunca tivesse acontecido.

Os Estados Unidos apoiaram e em muitos casos engendraram todas as ditaduras direitistas do mundo depois da Segunda Guerra Mundial. Refiro-me à Indonésia, à Grécia, ao Uruguai, ao Brasil, ao Paraguai, ao Haiti, à Turquia, às Filipinas, à Guatemala, a El Salvador e, claro, ao Chile. O horror que os Estados Unidos infligiram ao Chile em 1973 jamais poderá ser expiado e jamais poderá ser esquecido.

Centenas de milhar de mortes tiveram lugar em todos estes países. Será que tiveram mesmo lugar? E será que todas elas são imputáveis à política externa dos Estados Unidos? A resposta é sim, elas aconteceram mesmo e são imputáveis à política externa dos Estados Unidos. Mas nós não sabemos de nada.

Isto nunca aconteceu. Nada jamais aconteceu. Mesmo quando estava acontecendo, não estava acontecendo. Não importava nada. Não tinha interesse nenhum. Os crimes dos Estados Unidos têm sido sistemáticos, constantes, traiçoeiros, impiedosos, mas muito pouca gente tem realmente falado neles. Temos de fazer essa justiça à América: entregou-se por todo o mundo a uma completa e cínica manipulação do poder em todo o mundo ao mesmo tempo que se mascarava de uma força para o bem universal. Isto é um ato de hipnotismo brilhante, espiritual até, e altamente eficaz.

Os Estados Unidos, digo-vos eu, oferece-nos hoje o maior espetáculo do momento. Pode ser um país brutal, indiferente, desdenhoso, cruel, mas é também muito esperto. À imagem de um caixeiro viajante, age por conta própria e o seu artigo mais vendável é o amor a si próprio. É um vencedor. Ouçamos todos os presidentes americanos na televisão dizendo as palavras «o povo americano», como na frase “Eu digo ao povo americano que está na altura de rezar e defender os direitos do povo americano e eu peço ao povo americano que confie no seu presidente em relação à ação que está prestes a desencadear em nome do povo americano.”

É um estratagema brilhante. Empregam realmente esta linguagem para manter o pensamento à distância. As palavras «o povo americano» fornecem um almofada de segurança verdadeiramente voluptuosa. Não é preciso pensar. Recostemo-nos apenas na almofada. A almofada pode estar a sufocar-nos a inteligência e as faculdades críticas, mas é muito confortável. Isto claro que não se aplica aos 40 milhões de pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza e aos 2 milhões de homens e mulheres encarcerados no vasto gulag das prisões que se estende de um lado ao outro dos Estados Unidos.

Os Estados Unidos já não se preocupam com o conflito de baixa intensidade. Já não vêem qualquer interesse nas reticências nem mesmo na dissimulação. Põem as cartas na mesa sem medo nem favor. Está-se muito simplesmente nas tintas para as Nações Unidas, para a lei internacional ou para os dissidentes, que olham como impotentes e irrelevantes. Aliás eles também têm o seu próprio cordeirinho que os segue preso ao cordel, a patética e passiva Grã-Bretanha.

O que é que aconteceu à nossa sensibilidade moral? Alguma vez a tivemos? Que significam estas palavras? Referir-se-ão elas a um termo muito raramente usado hoje em dia - consciência? Uma consciência que tem que ver não só com os nossos próprios atos, mas também com a responsabilidade que partilhamos nos atos dos outros? Estará tudo isto morto? Olhemos para Guantanamo Bay. Centenas de pessoas detidas há mais de três anos sem culpa formada, sem representação legal ou sem o devido processo, tecnicamente detidas para sempre. Esta estrutura totalmente ilegítima mantém-se, desafiando a Convenção de Genebra. É não só tolerada, mas também quase ignorada por aquilo a que se chama «comunidade internacional». Este insulto criminal está sendo cometido por um país que se declara como “líder do mundo livre”. Nós pensamos nos residentes de Guantanamo Bay? O que é que os media dizem sobre eles? Surge de vez em quando - um pequeno artigo na página seis. Estes homens foram relegados para uma terra de ninguém donde de fato nunca mais voltarão. Presentemente muitos estão em greve de fome, sendo obrigados a comer à força, incluindo residentes britânicos. Não há contemplações nestes procedimentos de obrigar a comer. Não há sedativos nem anestésicos. Apenas um tubo metido pelo nariz acima e na garganta. Vomitam sangue. Isto é tortura. O que é que o Ministro Britânico dos Negócios Estrangeiros disse sobre isto? Nada. O que é que o Primeiro Ministro Britânico disse sobre isto? Nada. Por quê? Porque os Estados Unidos disseram: criticar a nossa conduta em Guantanamo Bay constitui um ato hostil. Vocês ou estão conosco ou contra nós. E Blair calou-se.

A invasão do Iraque foi um ato de banditismo, um ato de notório terrorismo de estado que demonstra o absoluto desprezo pelo conceito de lei internacional. A invasão foi uma ação militar arbitrária inspirada numa série de mentiras sobre mentiras e numa grosseira manipulação dos media e portanto do público; um ato destinado a consolidar o controlo econômico e militar do Médio Oriente, fazendo-se passar - como último recurso - depois de falharem todas as outras justificações - por uma libertação. Uma formidável afirmação de força militar responsável pela morte e mutilação de milhares e milhares de pessoas inocentes.

Nós levamos aos iraquianos a tortura, as bombas de fragmentação, o urânio empobrecido, inúmeros atos de assassínio, a miséria, a degradação e a morte indiscriminados e chamamos-lhe “levar a liberdade e a democracia ao Médio Oriente.”

Quantas pessoas é que se terá de matar para se candidatar a ser considerado como assassino em massa e criminoso de guerra? Cem mil? Mais do que suficiente, teria eu pensado. Portanto, é justo que Bush e Blair sejam presentes ao Tribunal Internacional de Justiça. Mas Bush foi esperto. Não ratificou o Tribunal Internacional de Justiça. Portanto, se qualquer soldado americano ou, com muito mais razão, um político se encontrar no banco dos réus, Bush já avisou que mandará os Marines. Mas Tony Blair ratificou o Tribunal e está portanto sujeito à acusação. Podemos fornecer o endereço ao Tribunal se este estiver interessado. É em Downing Street, nº 10, Londres.

A morte neste contexto é irrelevante. Tanto Bush como Blair têm o cuidado de a pôr bem de lado. Pelo menos 100.000 iraquianos foram mortos pelas bombas e mísseis americanos antes de começar a insurreição iraquiana. Estas pessoas não contam. As suas mortes não existem. São nada. Eles nem sequer foram registrados como mortos. “Nós não fazemos contagem de cadáveres,” disse o General Americano Tommy Franks.

No princípio da invasão veio publicada na primeira página dos jornais britânicos uma fotografia de Tony Blair dando um beijo na cara de uma criança iraquiana. «Uma criança agradecida», rezava a legenda. Alguns dias mais tarde havia uma história e uma fotografia, numa página interior, de outro menino de quatro anos sem braços. A sua família tinha sido vítima da explosão de um míssil. Ele foi o único sobrevivente. “Quando é que me devolvem os braços?” perguntava ele. A história foi abandonada. Bem, Tony Blair não estava com ele ao colo, nem com o corpo de qualquer outra criança mutilada, nem com o corpo de qualquer cadáver sangrento. O sangue é sujo. Suja-nos a camisa e a gravata quando estamos fazendo uma declaração sincera na televisão.

Os 2.000 americanos mortos são um embaraço. São transportados para os seus túmulos durante a noite. Os funerais fazem-se discretamente, em lugar seguro. Os mutilados apodrecem nos seus leitos, alguns para o resto das suas vidas. Assim os mortos e os mutilados ambos apodrecem em diferentes tipos de campas.

Eis um extrato de um poema de Pablo Neruda, «Vou explicar certas coisas»:


E uma manhã tudo estava a arder
E uma manhã as fogueiras
Saíam da terra
Devorando seres vivos
E desde então o fogo,
A pólvora desde então,
E desde então o sangue.
Bandidos com aviões e com mouros,
Bandidos com frades negros a abençoar
Vinham do céu a matar crianças,
E pelas ruas o sangue das crianças
Corria simplesmente como sangue de crianças.

Chacais que os chacais desprezariam,
Pedras que o cardo seco morderia e cuspiria fora,
Víboras que as víboras odiariam!

À vossa frente vi o sangue
Da Espanha levantar-se
Para vos afogar numa só vaga
De orgulho e de facas!

Generais
Traidores:
Vede a minha casa morta,
Vede a Espanha ferida:
Mas de cada casa morta sai metal ardendo
Em vez de flores
Pois de cada brecha da Espanha
Sai a Espanha
Mas de cada criança morta sai uma espingarda com olhos,
Mas de cada crime nascem as balas
Que encontrarão um dia o caminho do vosso coração.

Perguntareis: por que a sua poesia
Não nos fala do sonho e das folhas,
E dos grandes vulcões de seu país natal.

Vinde ver o sangue pelas ruas
Vinde ver
O sangue pelas ruas,
Vinde ver o sangue
Pelas ruas!


Que fique bem claro que ao citar um poema de Pablo Neruda não estou de maneira nenhuma comparando a Espanha Republicana com o Iraque de Saddam Hussein. Cito Neruda porque em mais poesia nenhuma do nosso tempo li descrição tão poderosa e visceral do bombardeamento de civis.

Já antes disse que os Estados Unidos são agora totalmente francos ao pôr as cartas na mesa. É o caso. A sua política oficialmente declarada é agora definida como «full spectrum dominance» (dominação total em todas as frentes). Os termos não são meus, são deles. «Full spectrum dominance» significa controle de terra, mar, ar e espaço e de todos os recursos relacionados.

Os Estados Unidos ocupam agora 702 instalações militares pelo mundo fora em 132 países, com a honrosa exceção da Suécia, claro. Não sabemos bem como é que eles lá chegaram, mas o que é certo é que eles estão lá.

Os Estados Unidos possuem 8.000 ogivas nucleares ativas e operacionais. Duas mil andam nos ares em alerta, prontas para serem lançadas com 15 minutos de aviso. Estão desenvolvendo novos sistemas de força nuclear, conhecidas como «bunker busters» (destruidores de bunkers). Os britânicos, sempre cooperantes, têm a intenção de substituir o seu próprio míssil nuclear, o Trident. Para quem, pergunto-me eu, é que eles estão apontando? Para Osama bin Laden? Para ti? Para mim? Para o homem da rua? Para a China? Para Paris? Quem é que sabe? O que realmente sabemos é que esta insanidade infantil - a posse e a ameaça de utilização de armas nucleares - está no coração da atual filosofia política americana. Não nos devemos esquecer de que os Estados Unidos estão em permanente pé de guerra e não mostram qualquer sinal de afrouxamento.


Muitos milhares, senão milhões, de pessoas nos próprios Estados Unidos estão manifestamente fartas, envergonhadas e iradas com as ações do governo. Mas tal como as coisas estão, elas não constituem uma força política coerente - por enquanto. Mas a ansiedade, a incerteza e o medo que nós vemos crescer diariamente nos Estados Unidos não irá provavelmente diminuir.

Eu sei que o Presidente Bush tem muitos escribas de discursos extremamente competentes, mas eu mesmo gostava de me oferecer para esse ofício. Proponho a seguinte curta declaração que ele pode fazer à nação na televisão. Estou a vê-lo com ar grave, cabelo cuidadosamente penteado, sério, expressão de vencedor, sincero, muitas vezes divertido, às vezes com um sorriso torcido, curiosamente atraente, um homem dos homens.

“Deus é bom. Deus é grande. Deus é bom. O meu Deus é bom. O Deus de bin Laden é mau. É mau o Deus dele. O Deus de Saddam era mau, salvo que Saddam não tinha um. Ele era um bárbaro. Nós não somos bárbaros. Nós não cortamos a cabeça às pessoas. Nós acreditamos na liberdade. E Deus também. Eu não sou nenhum bárbaro. Eu sou o líder democraticamente eleito de uma democracia amante da liberdade. Nós somos uma sociedade cheia de compaixão. Com compaixão aplicamos a eletrocussão e com compaixão damos a injeção letal. Somos uma grande nação. Eu não sou um ditador. Ele é que é. Eu não sou nenhum bárbaro. Ele é que é. Sim, ele é que é. Todos o são. Eu tenho autoridade moral. Estão vendo este meu punho? Isto é a minha autoridade moral. E não se esqueçam disto.”

A vida de um escritor é altamente vulnerável, é quase uma atividade desnuda. Não temos que nos lamentar disso. O escritor faz a sua opção e fica preso a ela. Mas é verdade que estamos abertos a todos os ventos, alguns bem gélidos. Estamos de fora de nós mesmos, num limbo. Não encontramos refúgio nem proteção - a menos que mintamos - caso em que, evidentemente, construímos a nossa própria proteção e, podia argumentar-se, nos tornamos políticos.

Já me referi à morte algumas vezes esta noite. Vou agora citar um poema meu chamado «A Morte»


Onde encontraram o cadáver?
Quem encontrou o cadáver?
O cadáver estava morto quando o encontraram?
Como encontraram o cadáver?

Quem era o cadáver?

Quem era o pai ou a filha ou o irmão
Ou o tio ou a irmã ou a mãe ou o filho
Do cadáver abandonado?

O corpo estava morto quando foi abandonado?
O corpo foi abandonado?
Quem o abandonou?

O cadáver estava nu ou vestido para uma viagem?

O que vos fez declarar o corpo como morto?
Declararam o corpo morto como morto?
Conheciam bem o cadáver?
Como sabiam que o cadáver estava morto?

Lavaram o cadáver?
Cerraram-lhe ambos os olhos?
Enterraram cadáver?
Deixaram-no abandonado?
Beijaram o cadáver?


Quando nos olhamos ao espelho pensamos que a imagem que temos á nossa frente é fiel. Mas se nos deslocarmos um milímetro que seja, a imagem muda. Estamos realmente a olhar para uma infindável gama de reflexos. Mas às vezes o escritor tem de despedaçar o espelho - pois é no outro lado desse espelho que a verdade nos fita.

Eu acredito que, apesar dos enormes obstáculos que existem, a determinação intelectual firme, resoluta e invariável de, como cidadãos, definirmos a verdade real das nossas vidas e das nossas sociedades é uma obrigação crucial que nos incumbe a todos. É, de fato, imperativa.

Se tal determinação não fizer parte da nossa visão política, não podemos ter a esperança de restaurar aquilo que já estamos tão perto de perder - a dignidade do homem.

Tradução do texto original com o título Art, Truth & Politics. Discurso proferido na cerimônia da entrega do Prémio Nobel da Literatura de 2005. Luís Varela Pinto,

* Escritor e dramaturgo norte-americano, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2005.

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