quinta-feira, 28 de março de 2013


Verdade ou realidade?

O teatro, dada sua peculiaridade, é uma das mais nobres, difíceis e profundas das artes e a que apresenta o maior número de variações. A cada nova apresentação de uma peça, embora o tema central permaneça constante, há sempre nova nuança, nova filigrana descoberta pelo ator para realçar seu personagem, nova sutileza a ser passada ao público. Por mais parecidas que sejam as representações, elas jamais se repetem, ao contrário dos filmes. Nunca são iguais.

Caiu-me nas mãos um livreto, de um autor teatral campineiro, contendo originais de três peças, à primeira vista despretensioso para quem não se dá o trabalho de ler, mas se limita apenas a folhear um livro. Não é o meu caso, apresso-me em ressaltar. Leio tudo o que me cai nas mãos. E não somente o que escolho cuidadosamente, nas livrarias e nos sebos, mas, e principalmente os livros que recebo dos autores, precedidos de pedido para que me manifeste a propósito. Caso goste, comento sem problemas, buscando destacar o que mais me chamou a atenção e me agradou. Caso contrário... Abstenho-me de comentar. Mas nunca deixo de ler, tanto o que é excelente, quanto o nem tanto.

Um dos temas enfocados no livreto, que me foi ofertado por um amigo, é o caso Sacco & Vanzetti, que em fins da década de 20 do século passado ocupou as manchetes dos jornais, por se constituir em tremendo erro judiciário. O autor, Homero Martins, encarna em seus personagens. Retrata-os em suas dimensões humanas, com as grandezas e as fraquezas inerentes ao homem.

Lendo essa peça, e as duas que completam o livro ("O Regresso" e "Manuel Maçores"), entende-se o que o escritor quis dizer com a advertência que escreveu na contracapa. "A tinta que se estampa no papel, em forma de letra, é o sangue que corre na veia de cada personagem que se cria", constata. E é mesmo. Deveria ser sempre, em qualquer obra literária, quer se trate de ficção ou não.

Confesso que nunca tive a oportunidade de conhecer Homero Martins pessoalmente. Não havia, portanto, nenhum fator subjetivo (para o bem ou para o mal) para eventualmente distorcer minha opinião a respeito do livro, nem para adoçá-la e muito menos para torná-la azeda ou, pior, amarga. O que senti ao ler o texto das três peças (e ainda sinto ao relê-las) é uma familiaridade no idealismo do autor, na sua crença nas virtudes humanas, nas suas esperanças e sonhos, presentes em cada linha, cada fala, cada protagonista do livro.

No prefácio, o teatrólogo Ton Crivelaro esclareceu minha dúvida sobre Homero Martins que, pelo que me ficou claro, sobretudo, ama o teatro. Diz: "O espetáculo era numa favela, a luz era a que iluminava a rua, o palco, um terreno baldio que com algumas tábuas sobre o mato dava algumas condições para a apresentação. O público, ansioso por assistir àquilo que chamava de teatro, mas que ali, poucos conheciam. Quase na metade da apresentação surge a figura do coronel, o seu pisar dava o compasso para que eu tocasse alguns acordes e ele começava sua trajetória ali na favela, com a mesma preponderância exercida no melhor teatro do País, desanichando assim toda a plenitude da personagem. O ator era Homero Martins. Aquilo era amor pelo teatro".

Há ainda muita confusão em torno do papel da arte na vida das pessoas. Para uns, ela é rigorosamente supérflua. Para outros, traz a fórmula da felicidade. Todavia, não é uma coisa e nem outra. O que ela busca, ou deve buscar, não é a proximidade com a realidade e nem ser seu espelho. Esta, na sua crueza, prescinde das imitações. Também não se trata de fuga do real, para um mundo abstrato, imaginário, inexistente, meramente idealizado.

George Bataille afirma que "há bastante grandeza no homem para que se possa compreendê-lo a partir da sua miséria, e bastante miséria para que se possa fazê-lo a partir de sua grandeza". O que a arte procura ressaltar é o lampejo de divindade existente neste animal inteligente, posto que em proporções variadas. Ou, como afirma André Gide: "Eu arrumo os fatos de maneira a torná-los mais próximos da verdade do que da realidade".

Os personagens de Homero Martins, em geral socialmente marginalizados, são, sobretudo, verdadeiros. Mesclam misérias e grandezas, os dois opostos que compõem este ser tão frágil e, no entanto, de tamanha complexidade, que é o homem. Pena que as peças não tenham sido mais representadas em lugar algum (pelo menos nunca mais ouvi falar delas) e o livro, de tiragem restrita, chegou a pouquíssimas mãos de pessoas que o ignoraram e provavelmente não o leram. Da minha parte, embora com décadas de atraso, mantenho minha coerência e teço essas considerações sobre a obra de Homero Martins. Ignorada ou não por terceiros, agradou-me. E, por questão de princípio e de coerência, mesmo tão tardiamente, manifesto-me, com honestidade, a propósito.

Boa leitura.

O Editor.

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Um comentário:

  1. Diferença bastante sutil ao ponto de confundir-me com a diferença dessas duas palavras, no caso do fato e sua versão, da verdade e da realidade.

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