quarta-feira, 20 de março de 2013


Discípulo que nunca conversou com o mestre

A palavra “discípulo” nem sempre (diria quase nunca) é interpretada em seu real significado, pelo menos não em todas suas acepções. Sugere – sobretudo aos que não têm o hábito de questionar e aceitam tudo a priori – que aquele que ostenta essa condição, “conhece” seu mestre pessoalmente e mais, convive com ele e segue-o onde quer que vá. Certo? Errado. De fato, o conhecimento pessoal é uma das situações possíveis, mas não é indispensável. O Wikcionário (dicionário da enciclopédia eletrônica Wikipédia) define da seguinte maneira a palavra “discípulo”: “aquele que aprende, ou recebe instrução de alguém; aluno, estudante; aprendiz; seguidor de uma doutrina”.

Por este último significado, portanto, posso seguir determinada linha de pensamento de alguém sem, necessariamente, conviver com seu autor ou sequer conhecê-lo pessoalmente. O leitor deve estar torcendo o nariz, achando que cismei de polemizar outra vez e em um tema que não comporta polêmica. Asseguro que não. E comprovarei na sequência. A Wikipédia caracteriza a palavra da seguinte maneira: “Discípulo é aquele que segue outrem em suas ideias, atitudes, posições ideológicas e determinações existenciais. Resumindo discípulo é aquele faz tudo o que seu mestre quer e crê em tudo o que ele diz e tem o desejo de ser igual a ele”.

Vocês acham que isso não é possível? Pois eu provo que é. O psicanalista André Green é considerado um dos mais fieis e intransigentes discípulos de Sigmund Freud. Inúmeras vezes foi criticado por essa irrestrita fidelidade e por elaborar toda sua obra baseada completamente nos princípios freudianos sem jamais se afastar, em ponto algum, deles. Todavia, jamais se encontrou pessoalmente com seu guru. Um nunca chegou a conhecer o outro. Em ocasião alguma, portanto, estiveram cara a cara. Nunca conversaram, jamais se corresponderam e não mantiveram o mínimo contato um com o outro. E nem poderiam se encontrar. Não, pelo menos, na condição usualmente entendida de mestre e discípulo. Sabem por que?

Quando Freud morreu, em Londres, vitimado pelo câncer, André Green tinha, apenas, doze anos de idade (nasceu em 12 de março de 1927)! E mais, concluiu seu treinamento psicanalítico apenas em 1965! Aliás, ele ainda estava em atividade há somente dois anos, portanto, em pleno século XXI. André Green morreu em 2011, quando Freud já era (e é) considerado praticamente apenas um mito e nem tanto o notável pioneiro das pesquisas sobre o funcionamento e os desarranjos da mente de carne e osso. No entanto... é tido e havido (pois de fato foi) discípulo, e fidelíssimo, do “Pai da Psicanálise”. Por esta vocês não esperavam, não é mesmo?

A vida de André Green apresenta uma série de peculiaridades, além da que citei. Seu nome, por exemplo, sugere descendência inglesa ou algo que o valha. Nasceu, no entanto, no Cairo, ou seja, no Egito. No fundo da alma sentia-se francês e foi na França que desenvolveu brilhante carreira. Tinha em comum, com Freud (além das ideias, que abraçou com tanto entusiasmo) o fato de ser judeu, como o mestre. O pai, sefardita, era originário de Portugal e a mãe, da mesma facção, era proveniente da Espanha.

Recorro à excelente resenha escrita pela psicanalista Isa Lopes Paniago, da Sociedade de Psicanálise de Brasília, para apresentar um resumo da a contribuição de André Green para essa hoje consolidada disciplina psiquiátrica. Ela destaca, em determinado trecho: “Sua obra é reconhecida pela importância, pelo volume de suas publicações em livros, artigos e conferências e, também, pela diversidade e originalidade dos temas tratados. É uma obra muito complexa em sua formulação, traçada na abordagem rigorosa da teoria freudiana. Green divide sua produção em dois grandes grupos: os trabalhos de psicanálise pura e aplicada. Refere-se à psicanálise aplicada ao texto literário, que considera como uma forma de prosseguir sua própria análise. Descreve que Shakespeare certamente desempenhou para ele papel de analista. O texto literário funciona como um objeto transicional, que permite ao analista aumentar o conhecimento de si mesmo. As grandes obras tocam o inconsciente de maneira profunda. Seu livro ‘O Desligamento’ é um exemplo desse grupo”.

Só por esse último aspecto, seu nome é obrigatório de ser citado em um espaço como este, voltado à Literatura. Quem diria! Então o texto literário constitui-se em importante peça para a psicanálise (no caso, a nossa, de leitores)?! Bem que eu desconfiava! Para não deixar você no ar, acrescento mais este trecho da resenha feita por Isa Lopes Paniago sobre a obra de André Green: “Nos trabalhos teóricos e clínicos, aprofunda-se na metapsicologia freudiana e trabalha temas como o afeto, os casos-limite, a clínica do vazio, a teoria do negativo, o narcisismo negativo, a alucinação negativa, a psicose branca, o irrepresentável e a pulsão de morte, a mãe em todos os seus estados - mãe morta, mãe fálica, mãe negra, e a terceiridade, temas em que contribui profundamente com a psicanálise contemporânea”.

Fico matutando com meus botões: com o advento e popularização da internet, é possível (não sei se provável) que tenhamos uma infinidade de “discípulos” (pelo menos potenciais) espalhados por aí, mundo afora, sem que nem mesmo desconfiemos. E eles, provavelmente, jamais manterão qualquer espécie de contato conosco. Não é fascinante (se não preocupante)?! Já pensaram que tremenda responsabilidade a que temos na veiculação de nossas idéias?!!!

Boa leitura.

O Editor.  

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Um comentário:

  1. Com esses atuais estudos descobriremos enfim, o motivo de termos pulsão criativa, e essa estranha mania de escrever para os outros lerem, muitos e diversificados.

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