domingo, 17 de março de 2013


Convicção e perseverança

A austríaca Melanie Klein é uma das personagens mais fascinantes da história da psicanálise e não apenas como profissional competente, criativa e genial, mas também como pessoa de fibra. Para mim, suas principais virtudes foram: convicção e perseverança. Imaginem a ousadia que era, nos anos iniciais do século XX, uma mulher ter a pretensão de estudar e de competir em alguma profissão tida e havida, na ocasião, como exclusivamente masculina! Não era tarefa para qualquer uma. Sofreria, caso ousasse encarar o desafio, ferrenha oposição, e de todas espécies e todos lados, a começar pela da família. E não raro (na verdade, sempre) acabava estigmatizada pela sociedade.

Melanie, contudo, desafiou preconceitos e tabus e firmou prestígio como um dos nomes mais relevantes da história da psicanálise. Há quem diga que ela contestou as idéias de Sigmund Freud. Bobagem. O que fez, de fato, foi dar continuidade aos estudos e descobertas dele, contribuindo para um entendimento mais amplo e mais claro da mente, do seu funcionamento, de seus desarranjos e de como curá-los. Considero-a – e ela é hoje considerada dessa forma pela maioria dos entendidos na matéria – como psicanalista posfreudiana. Em vez de contestar as idéias do “Pai da Psicanálise”, aprofundou-as, partindo de onde ele parou. E comprovou sua exatidão, mediante experiências práticas bem sucedidas.

Não bastasse ser mulher e, por essa razão, ter todas as portas da ascensão profissional fechadas, Melanie era, para complicar ainda mais suas pretensões, judia. Isso  tornava-a alvo de preconceito muito mais exacerbado e cruel, em uma Europa eminentemente racista e preconceituosa (desconfio que ainda seja atualmente, posto que sob eufemísticas camuflagens), que atribuía aos semitas a responsabilidade de praticamente todos os males do mundo. E a repulsa social a eles chegou a ponto de, anos depois (poucos), os nazistas elaborarem e porem em execução o sinistro e absurdo plano criminoso, conhecido como “Holocausto”, para simplesmente varrer essa etnia do mapa. Quase conseguiram.

Melanie Klein nasceu em Viena, em 30 de março de 1882, quando Sigmund Freud já era adulto e quando. aos 26 anos de idade, já se empenhava em suas pesquisas psicanalíticas. Ela viria, porém, a conhecer pessoalmente esse mestre apenas em 1920, em um congresso psicanalítico realizado em Haia, na Holanda. Acho pitoresco o fato de, mesmo tendo nascido na mesma cidade em que o notável psicanalista desenvolveu toda sua carreira – e que só deixou em 1938 para refugiar-se em Londres – o encontro ter demorado tanto tempo para acontecer. Ou seja, quando Melanie já tinha 38 anos de idade, prestes a iniciar a própria carreira. Mais estranho ainda foi o fato dele ter acontecido fora de Viena e até da Áustria. Ironia das circunstâncias.

Melanie, contudo, já conhecia, na ocasião em que se encontrou com ele, a obra de Sigmund Freud, com a qual entrara em contato em 1916, quando residia em Budapeste, e pela qual ficou fascinada. Na época ela foi analisada por Sandor Ferenczi, que a estimulou a iniciar o tratamento de crianças, que veio a se tornar sua especialidade. Para chegar até aí, todavia, teve que superar inúmeros obstáculos, de diversas naturezas, o que fez com muita garra e coragem. E, sobretudo, com inteligência.

Melanie, desde tenra infância, conviveu com a rejeição e a tragédia em família. Seus pais, embora brilhantes nas respectivas funções, não se entendiam. Viviam brigando. Ainda assim, geraram vários filhos. Ela era a quarta deles. Sentia-se indesejada e os pais davam-lhe seguidas mostras que não a desejavam mesmo. A mãe, Libussa, judia eslovaca de personalidade forte, era pessoa de difícil trato. Era tirânica, possessiva, destrutiva até e se intrometia o tempo todo na intimidade de Melanie. Mas nunca para ajudar. Para complicar as coisas, e gerar-lhe o complexo de culpa que a perseguiria por muitos anos (sobre o qual discorreria mais tarde em seus livros), teve que conviver com diversas tragédias familiares.

Quando tinha só quatro anos, por exemplo, testemunhou a morte da irmã, Sidonie, vitimada pela tuberculose, aos oito anos de idade. Melanie sentiu-se culpada por isso, embora, evidentemente, não fosse e nem pudesse ser. Já moça, aos 18 anos, perdeu o pai, debilitado há muito tempo por uma prolongada doença cardíaca. Ficou sob a tutela da mãe, que não compreendia e nem era compreendida por ela. Mas não foi só. Quando estava com vinte anos, perdeu o irmão Emmanuel, com o qual tinha fortes laços afetivos e que a influenciou muito para que estudasse e exercesse a profissão que viesse a escolher. Essa perda foi particularmente dolorosa, porque testemunhou todo o processo de decadência física, moral e psicológica dessa pessoa de que tanto gostava, sem poder fazer nada para deter o processo. Emmanuel morreu em decorrência do esgotamento causado por uma doença incurável, pelo desespero e, principalmente, por causa das drogas em que se viciou.

Aos 14 anos, Melanie interessava-se por Artes. Todavia, decidiu seguir a profissão do pai, que era médico. Não chegou, no entanto, a completar o curso. Abandonou-o ao meio, aos 21 anos, ao se casar com Arthur Klein (provavelmente influenciada por ele). Após o casamento, resolveu retomar seu projeto original e cursar Artes e História na Universidade de Viena. Também não chegou a se graduar. Decidiu, finalmente, contentar todo o mundo e assumir o papel então atribuído às mulheres: o de mãe e responsável pela educação das crianças e gestão da própria casa. Mas não por muito tempo. Teve três filhos. Com o passar dos anos, no entanto, após conhecer a obra de Freud, concluiu que era o que pretendia ser na vida: psicanalista. Preparou-se para isso, ignorou o preconceito, superou uma infinidade de obstáculos, abriu mão de uma série de preferências e privilégios e tornou-se, afinal, o que se propôs a ser. Ou seja, a maiúscula personagem que foi, até sua morte (ocorrida em Londres, aos 78 anos, em 22 de setembro de 1960), no complexo e competitivo campo da psicanálise.

Boa leitura.

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