sábado, 23 de fevereiro de 2013


Os bichos que eu tive

* Por Risomar Fasanaro

Gosto muito dos animais, e os cachorros foram durante muito tempo os animais domésticos de que mais gostei. Quando éramos crianças: Paulo, Rômulo, Mércia e eu tivemos nosso primeiro cachorro. Não-se-diz era um cachorro preto, enorme e... Bem,  não tenho tanta certeza, porque éramos tão pequenos que ele era maior que todos nós.  Além de grande, era dócil. Dócil e feliz. Estava sempre abanando o rabo em volta da gente. Apanhando alguma coisa  e nos trazendo pra agradar.

Era todo preto e quando saíamos pela Vila Militar em Socorro, onde morávamos, era comum as pessoas nos pararem só pra perguntar: “como é o nome desse cachorro?” e quando inocentemente respondíamos, elas riam e diziam: “mas digam, quero saber... “ E a gente insistia no “Não–se-diz”.

Engraçado: não me lembro como ele morreu. Provavelmente mamãe mandou enterrá-lo em algum lugar escondido da gente. Ela achava que crianças deveriam ser poupadas das tristezas. Mas não adiantou, porque a tristeza em nossa casa se instalou de  tal forma, que uma noite um primo nosso chegou do Recife com uma caixa de sapatos, colocou-a no centro da sala, no chão, chamou todos nós e nos mandou abrir.

Quando um de nós tirou a tampa da caixa, a sala se encheu de exclamações: “que lindo! que bonitinho!”, mas a expressão mais repetida foi: “é meu”, “é meu” , “é meu”, “é meu” – isso mesmo: quatro crianças sem-cachorro, ensaiando o que hoje tantos adultos fazem quando não têm algo: se apropriaram daquele bichinho de pêlo marrom. E durante  treze anos, o amamos tanto que logo, logo, ninguém se intitulava dono dele. Isso foi muito antes de a  dona Zílbia Gasparetto escrever  seu famoso livro “Ninguém é de Ninguém”. E um de nós, não me lembro quem, deu a ele o nome de Pulique. Nunca soube de onde se tirou nome tão estranho.

Mas ao lado de Pulique, que era pastor alemão, tivemos vários outros cachorros, sempre vira-latas, sempre abandonados. Um dos que mais gostei foi Baião que andava todo se rebolando. Outro foi o de uma vizinha que foi atropelado. Quando voltava da escola, vi o cão ferido, com as patas traseiras quebradas, jogado à beira da estrada.

Corri até à vizinha e ela disse que não iria buscá-lo, que podia deixá-lo morrer. Perguntamos se ela nos daria o cachorro, se fôssemos buscá-lo, e ela deu, então levamos um cobertor velho e o trouxemos para casa naquela maca improvisada.

Minha mãe preparou uma mistura de breu, clara de ovo e farinha de trigo. Colocou  aquela mistura em um pano  e “engessou” os quadris do Baião. Assim ele ficou em um caixote durante dias e dias até que percebêssemos que o (im)paciente já estava  pronto para  novas aventuras.

Aquele cachorro foi minha paixão durante muito tempo, mas um dia morreu, e para ele fizemos um enterro digno. Aliás, todos nossos cães eram enterrados com nossa presença, nossas lágrimas e algumas poucas flores que conseguíamos naquela terra tão seca.

Pulique o mais querido, que até trouxemos para São Paulo quando viemos, além de toda a cerimônia de sepultamento, foi fotografado durante todo o enterro, pelo meu irmão Rômulo. Temos até hoje essas fotos. Além dos cachorros, havia no imenso quintal galinhas, perus, patos, gansos, coelhos e dois jabutis:  o maior era Burocracia em.  homenagem à Mafalda, a Quino, seu criador, e  o menor se chamava Democracia, em homenagem a Garrastazu Mèdici, pois isso foi na época da ditadura.

Quem pensar que os animais não têm espírito, nem sentimentos, nunca prestou atenção a eles. Quando Baião morreu, ficamos muito tristes, e um mês após sua morte,  uma noite minha irmã e eu íamos à casa de uma amiga nossa quando vimos Baião atravessando a rua. Na metade do caminho desapareceu. Sumiu no ar. Quem quiser, duvide. Aconteceu conosco. Uma agarrou a mão da outra e correu de volta pra casa, morrendo de medo e contando o que vira. Impossível ser ilusão, algo visto por duas pessoas ao mesmo tempo.

Democracia e Burocracia formavam um casal apaixonadíssimo. Viviam transando e não se importavam que todos ouvissem os sons que emitiam quando estavam se amando. Um dia Democracia amanheceu morta  e era de doer, testemunhar  a tristeza, a dor  de Burocracia. Ela ia lá perto da companheira, cheirava, cheirava, e as lágrimas corriam, formando aquelas marcas molhadas na carinha seca.

Quando retiramos Democracia para enterrá-la, Burocracia entrou em profunda depressão. Vivia com a carinha escondida sob o casco, e só a expunha quando por insistência nossa ela comia algum pedaço de banana. Penalizada com aquela tristeza, doei-a a uma veterinária que tinha um sítio onde havia outros jabutis para lhe fazerem companhia.

Aí tivemos um papagaio: Ravel era meu. Dei a ele o nome de um dos meus compositores preferidos. Minha mãe ensinou-o a cantar e eu a falar várias frases. Ele imitava minha risada de forma perfeita, e quando meu pai fazia o café, ele sentia o cheiro e ficava repetindo: “louro quer café, louro quer café”.

Com medo que ele fugisse, uma prima colocou uma corrente no pé dele. Uma manhã senti sua falta. Cadê o louro pedindo café? Procuramos por toda parte, e desolados o descobrimos afogado dentro da privada do banheiro de empregadas que tinha ficado destampado, do lado de fora da casa. Ele deve ter caído, e com o peso da corrente, não conseguiu sair de lá de dentro. Impossível dizer o sofrimento de toda a família. Ravel era como uma pessoa.

Há pouco mais de três anos, eu morava em um apartamento térreo e um dia um cachorro vira-lata me adotou. Entrou no prédio e virou meu segurança de livre e espontânea vontade. Ninguém podia se aproximar de mim que ele avançava. À noite ficava passeando pelo muro do prédio, como guarda de presídio. Era lindo. Todo branco, pêlo liso, com uma mancha preta no olho esquerdo, igual aos piratas das histórias e dos filmes de aventuras. Batizei-o de Fidel, em homenagem ao Castro.

Um dia Fidel sumiu. Todo o pessoal da rua se movimentou para encontrá-lo, mas ninguém conseguiu trazê-lo de volta. Nunca soube o que aconteceu com ele, mas provavelmente foi roubado. Da condição de abandonado  passou a ter o status de um cão raro, querido, amado por toda a vizinhança que pra meu desgosto o chamava de Felipão, em homenagem ao técnico de futebol.

Ouço sempre pessoas reclamando de animais: “fui à casa de fulano, tinha cheiro de xixi de cachorro, o gato de sicrano me arranhou... “ Nossos animais nunca ficaram dentro de casa, por isso nunca  tivemos  problemas dessa natureza. Depois de Fidel, nunca mais quis ter nenhum outro animal. Meu coração não agüenta mais sentir saudade.

Agora, que moro no 12° andar, tenho um relógio que marca o tempo com o canto de aves brasileiras, gravadas por Dalgas Frisch. Cada hora um canto diferente. Quanto mais luz, mais alto fica o canto. É lindo. Então sei que às 17h o Jaó canta. Vocês conhecem o canto do Jaó?  É triste em demasia. Por isso, quando se aproxima a hora de ele cantar, deixo a sala na penumbra para que o canto fique bem baixo, e eu quase não o escute, pois me dá saudade do café  que meu pai fazia, pra tomar com o cuscus de milho feito por minha mãe, justinho nessa hora.

Mas ainda tenho animais domésticos sim. Por enquanto são só três:  Eles não fazem nada que provoque reclamação. Não gritam, não fazem xixi nos sofás, não arranham as visitas. Trabalho? Nenhum... Só troco a água com açúcar todos os dias, para que não fiquem com feridinhas na garganta. Mas em compensação, quanta beleza, quanto encantamento, quanta poesia eles trazem à minha vida.  Quando aparecem ninguém fica indiferente. Todos param de falar para vê-los. E todos se encantam com meus três beija-flores: Beethoven, Stravisnky e Otávio.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora,  autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro.


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