domingo, 24 de fevereiro de 2013


Indivíduo e rebanho
(Conto)

* Por Pedro J. Bondaczuk

O comportamento da multidão, daquela massa amorfa e anônima das ruas, é imprevisível como o dos elementos da natureza. Pode se tornar incontrolável, indo da fúria arrasadora ao pânico insano. O indivíduo, no meio do populacho desgovernado, perde seus freios morais (sua noção do certo e errado), e age por impulso, acompanhando a maioria. Deixa-se contagiar pelo sentimento geral e comete atos que em sã consciência jamais cometeria.

São freqüentes, por exemplo, casos de linchamentos, de bárbaras atrocidades que, individualmente, os que participam desses atos seriam incapazes de praticar.

Há algum tempo, tive um exemplo desse comportamento atípico da multidão, quando estive no Rio de Janeiro, a passeio. Lembro-me que em conversa informal, a propósito das memórias de Albert Einstein, que havia lido recentemente e cuja leitura concluíra no vôo da ponte-aérea, me insurgi contra uma expressão utilizada pelo físico para caracterizar a massa: "rebanho".

Entendia que o termo feria a dignidade humana e deveria ser utilizado apenas quando se tratasse de animais irracionais. Meu amigo Fernando Reis, atilado advogado e homem bastante prático, no entanto, concordou com a caracterização.

Não sei se para me provocar, achou-a até bastante oportuna, quase literal. Conversa vai, conversa vem, discute daqui, argumenta-se dali, e meu interlocutor dispôs-se a comprovar, na prática, o acerto da definição.

Mais tarde, esquecido da nossa controvérsia, fomos juntos ao centro da cidade. Em dado momento, Fernando parou na calçada da Avenida Rio Branco, ao lado de uma banca de jornais e pôs-se a olhar insistentemente para o alto, para a janela de um prédio comercial, de trinta andares, do outro lado da rua, apontando com o dedo, como se a mostrar alguma coisa alarmante em um dos escritórios.

Da posição que estávamos, víamos a silhueta de uma mulher inclinada por sobre o parapeito, em atitude que significava, no mínimo, imprudência, pois poderia despencar acidentalmente de onde estava. E aí... seria morte certa.

Como o amigo apontasse insistentemente para o alto, começou a juntar gente ao seu redor.
--- "O que está acontecendo"? –.  perguntou, curioso, um camelô, olhando para a mesma direção.
--- "Olhe, uma mulher está ameaçando pular pela janela" –.  respondeu o advogado,  meu amigo, como se dando uma informação trivial, do tipo que horas são.

Fiquei perplexo. De onde Fernando havia tirado essa idéia?! Alarmado com a possibilidade de tumulto, tentei afastar-me discretamente, como se não estivesse na sua companhia, já que o grupo havia crescido e no local cerca de 40 pessoas olhavam para a mesma janela, onde, supostamente, estaria se desenrolando mais um drama do violento cotidiano do Rio.

E a aglomeração foi crescendo, crescendo, crescendo... E eu ficava cada vez mais preocupado com a situação.
--- "Será que o Fernando enlouqueceu?!" –, pensava com meus botões, estranhando sua atitude, já que o tinha em conta de uma pessoa muito racional e responsável.

A cada nova pergunta de alguém, vinha uma resposta, digamos... um tanto quanto modificada.
---"Um ladrão está mantendo uma mulher como refém no vigésimo-quinto andar" –,  respondeu o camelô, que havia feito a indagação inicial, ao questionamento de um senhor de gravata, com aspecto de operador da Bolsa.

Afastamo-nos dali, de fininho, e fomos fazer as compras que tínhamos planejado. Eu ainda estava assustado com a atitude de Fernando. Este estava tranqüilo, como se não houvesse feito nada de errado.

A citação de Einstein, que estava no cerne da nossa polêmica, era: "O que há de verdadeiramente valioso nesta epopéia da vida humana, não me parece ser o Estado, mas sim o indivíduo humano, criador e sensível, a humana personalidade; só ela cria coisas sublimes e nobres ao passo que o rebanho como tal, permanece obtuso em seu pensar e obtuso em seu agir".

Cerca de duas horas após termos nos afastado do local do incidente, resolvemos voltar lá. Ao chegar na calçada oposta à do prédio em questão, o amigo olhou-me e piscou, com ar maroto de cumplicidade, como a dizer: - "Quer ver como a história aumentou de tamanho?"

E havia aumentado mesmo, considerando-se o tumulto. Havia grupos fazendo manifestações das mais variadas. Podiam ser vistos, por exemplo, rústicos cartazes de cartolina, pedindo um "basta às agressões contra as mulheres". Um coro histérico exigia: "justiça! justiça! justiça!".

Fernando chegou perto de uma senhora gorda, bem vestida, que aparentava uns quarenta anos de idade e excelente condição econômica e social, e perguntou:
--- "O que está acontecendo?"
--- "Uma vergonha!" –, respondeu, irada, a mulher, que levava jeito de militante feminista, dessas bem ferrenhas.
---"Um empresário tentou cantar a secretária e como esta reagiu, está ameaçando jogá-la pela janela. Os homens são todos uns porcos!" – sentenciou, indignada, à guisa de explicação.

Meu amigo, com o maior cinismo deste mundo, mostrando uma indignação que na verdade não sentia, pôs lenha na fogueira:
---"Deveria haver pena de morte no País! Estes casos acontecem por causa da impunidade!" – disse em tom inflado, de discurso, como que a buscar o apoio da multidão.

Depois, virando-se para mim, cochichou, dando uma piscadela marota:
--- "Rebanho!!".

Claro que entendi a mensagem, embora, logicamente, discordando do irresponsável "teste" organizado pelo meu imprudente amigo, que havia conseguido mobilizar, com sua molecagem, polícia, bombeiros, imprensa e sabe-se lá mais o quê.

Até uma unidade móvel de uma rede nacional de televisão estava estacionada no local, para informar sobre o tumulto. O que o repórter disse no ar, não sei e não me interessei em saber.

Mas ambos, Fernando e eu, e provavelmente só nós dois naquela turba agitada e inquieta, sabíamos o que de fato estava ocorrendo naquela local e naquela hora: Era apenas uma faxineira imprudente, que se debruçou, perigosamente, na beira do parapeito de uma janela, para limpar o vidro, e nada mais.

Saímos rápido dali, antes que a polícia, descoberto o logro, começasse a indagar, em busca da origem do boato. Pelo que fiquei sabendo no dia seguinte, jamais descobriu. Sequer desconfiou...


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 
                 


Um comentário:

  1. Uma estória bem entalhada e verossímil. Os tumultos podem surgir de um fato grandioso ou se tornar mais grandiosos que o fato.

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