quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Um amor que não se cobra

Por Mara Narciso

Que destino triste aquele de Ana. Tão pequena e lhe morre a mãe. O pai casa-se novamente e lá se vai a coitada ser vítima das pancadas da madrasta. A malvada bateu tanto na cabeça da pobre, que ficou marcada, e não conseguiu aprender a ler. Na roça, ainda no escuro, quando mal alcançava o fogão, já enchia os pulmões para acender o fogo. Morena, magra, cabelos crespos, sem atrativos físicos ou intelectuais, nem de longe supunha encontrar Pedro João, rapaz bonito, que com ela se casou mal a menina fez 15 anos.

O seu marido levou-a para a cidade, na qual trabalhava num modesto cargo público. Tiveram seis filhos, e Ana, mansa e feliz, cuidava de tudo, com muito asseio e capricho. Pedro João a tratava com um carinho que dava gosto ver. Tão dócil e atento, não lhe deixava faltar nada, nem mesmo amor. Desdobrava-se para agradá-la, que, de cara boa, se mostrava contente da vida.

Dos filhos, tinha os seus preferidos, o mais velho e a mais nova. Mas protegia a todos. E os netos foram chegando, assim como problemas de saúde. Ana manifestou angina, que é uma dor no coração. Precisava de controles periódicos, mas isso não era problema, pois seu marido, agora já aposentado, a levava, de bom grado, para consultórios, laboratórios, clínicas e farmácias.

O filho mais velho desenvolveu insuficiência cardíaca por Doença de Chagas, e vivia mais internado do que em casa. O sofrimento adicional foi ver a nora o traindo, e deixando as crianças de lado. Ana viu seu filho morrer, e logo a viúva dele adoecer devido à vida desregrada, e que também veio a falecer, com seus netos ficando ao deus-dará. Ana sofreu muito, mas, corajosa, cuidou de todos.

Há tempos não sabia que dia era, nem do mês e nem da semana. Falava muito no filho morto, mas não sabia o ano da morte dele. Aliás, não sabia nem a data de hoje. Chorava muito, e, fervorosa, achava na religião consolo para suas dores. Venceu a depressão, e a vida continuou com Pedro João, o restante dos filhos e netos.

O seu grande prazer era cozinhar para o marido, que a elogiava, sem jamais lhe fazer a mínima crítica. Ana também não. Amava e era amada. Pouco saía, exceto para o médico e igreja. Mas teve de sair às pressas para o hospital, junto com seu xodó, a filha mais nova, que já tinha lhe dado um neto. Era para reconhecer um filho morto num acidente. Não a deixaram vê-lo. Muito jovem, o rapaz deixou viúva e filhos pequenos. Sua mãe ficou despedaçada, quase morta pela segunda vez, como se fosse possível morrer duas vezes.

Emagreceu muito com essa perda. Chorou até lhe faltar forças. Todo o sofrimento da saudade do primeiro filho voltou, e quem a conhecia achou que ela nunca mais sorriria. Mas tinha a filha mais nova, que se agarrou a Ana, levando-a para todos os lugares, atenta às necessidades da mãe.

Forte e disposto, tempos depois Pedro João ficou acabrunhado, não comia o que Ana lhe preparava, e também emagreceu, mas não se queixava. Levava a esposa aos lugares, mas, discreto, deixava Ana à vontade. Depois de terminada a conversa, aparecia.

E não é que Pedro João resolve adoecer? Amanheceu paralisado da cintura para baixo, e ainda assim não quis ir ao hospital. Mas a filha o obrigou a ir, ficando ao lado dele. Em uma semana estava morto. Foi um câncer de estômago que ele sabia existir há um ano, e que ocultou para não ser tratado. Ana tinha notado seu emagrecimento. Para que ela não sofresse, esperando pelo pior, ele a poupou.

Morto o marido, Ana demorou a conseguir se levantar, largada na cama sob efeito de calmantes. Dormia muito e não comia. Só falava em morrer. Quando se recuperou parcialmente da realidade tormentosa, e conseguiu forças para abrir os olhos, encontrou na filha mais querida um suporte, um consolo, uma esperança. A filha estava ao seu lado, como que atada a ela, ajudando-a em tudo. Morava perto e orientou o seu filho, já rapazinho, que passasse a dormir na casa da avó. Tomou conta da casa, carro, compras, contas, documentos, e retiradas da pensão, lhe dando também presença e carinho. Com voz suave e sorriso frequente, passou a mão nas receitas, organizou a tomada dos remédios, um problema grande para quem não sabe ler.

Tempos depois começaram a faltar coisas para Ana. Da pensão que permitia viver com folga, agora não dava mais. Busca daqui, procura dali, os outros filhos entraram na história para decifrar o sumiço do dinheiro. Mas as pancadas sobre a cabeça de Ana ainda não tinham terminado. Desde a morte do marido, a filha vinha roubando-lhe a pensão. Sem a mãe perceber, fora reformando a própria casa, trocando móveis, e também fez um empréstimo consignado. Como não havia mundo algum para desabar, pois tudo já havia ruído, Ana desabou.

Ah, como pode ser amarga a vida! Seu coração não resistiu. Sim, essa dor a matou.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade” – blog http://www.teclai.com.br/

4 comentários:

  1. Quanta tristeza, mas ao mesmo tempo quanta realidade. Narrativa dura, Mara, porém um retrato da vida. Abraços.

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  2. A lei que permite aposentados fazer empréstimos acordou os espertalhões, que não têm vergonha alguma em fazer dívidas para pais e avós, que ficam acuados e sem o mínimo para o seu sustento. Quando entre o assunto dinheiro, boa parte do amor filial desaparece. Obrigada, Marcelo, pelo comentário.

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  3. Triste realidade, Mara. Parabéns pelo texto. Abraço!

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    1. Soube depois que a filha comprou carro e foi à praia com o dinheiro da mãe. Revoltante! Obrigada pela passagem e comentário, Sayonara.

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