sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Irã & Irá e O Inquérito*

** Por José Calvino

Capítulo 13 - Irã & Irá

No terceiro andar do edifício Léa a polícia intima diversos hóspedes a depor sobre as mortes de Rômulo e Miguel Toriano, vítimas de leviandade e escândalos, assassinados no mesmo dia e hora e em locais diferentes. Delegados de polícia das cidades de Vitória e Olinda, em conjunto, procuravam elucidar os crimes.

Na tarde desse mesmo dia foi localizado pela polícia dois soldados do Exército à paisana, que freqüentavam sempre o apartamento de Rômulo, os quais perturbavam no cinema São Luiz, no qual passava um filme sério. Foi chamada a Polícia do Exército (PE), que os conduziu para o QG do IV Exército. No dia seguinte, através de ofício, foram encaminhados para a delegacia de homicídios para esclarecer fatos que os envolvia em assassinatos. Lá, não obtiveram êxito, só constatando haver os ditos militares dados ao vício do tóxico e habituados a praticar desordens nos cinemas do Recife, como fumar na hora da projeção, gritos estéricos com exceção aos filmes pornô, que assistiam com a maior atenção, pés nas cadeiras da frente..., tudo isso foi o suficiente para os anarquistas serem excluídos do Exército. Eram filhos de criação de Rômulo e Miguel (esse com o coração cheio de pontes safenas, igual ao Recife “cheio de pontes”), chamavam-se Irã e Irá por serem muito parecidos e da mesma idade, mas muito mal educados em lugares que exigem respeito ao próximo, ficando desta feita na mira da polícia.

Capítulo 14 - O Inquérito

Ao passar dos anos foi assassinado o ex-soldado Irã, no baixo-meretrício.

João de Deus e Irá viajaram para o sul do país, pois não constavam no processo criminal. João de Deus havia pago, bem pago, para que o inquérito policial não envolvesse a ambos. Bastava o vexame que o Irá passou na morte de Rômulo e Miguel Toriano.

João de Deus desde o princípio, se defendera com o delegado de Vitória, incluindo-o só como informante, inocentando, e nada mais. Obtivera experiência com os amigos doutores, principalmente com o médico que indicou um seu amigo para a tão esperada operação, em que a dose de cocaína e hormônio feminino fora maior, dando o terceiro sexo desejado e, conseqüentemente, a mudança do nome para Andréa. O médico e Andréa dialogavam muito, mas o que precisamente os preocupava era o envolvimento da polícia no caso. Principalmente o seu Irá, que era jovem e recém excluído das forças armadas e não tinha ainda experiência. Ficara louco com a morte trágica do seu pai verdadeiro, Elias. Andréa notava que iria, aos poucos, perder o seu dinheiro no vício. Ela já havia conseguido um internamento numa clínica psiquiátrica, para Irá, mas nada resolveu. Também estava notando que precisava se cuidar, só se acalmava quando usava as drogas passadas pelo médico-amigo. Sabia que o seu Irá não resistiria pela quantidade de medicamentos, pois sofria do coração.

Era junho e chovia muito no Recife. Do terceiro andar do edifício Léa via prédios úmidos, as poucas árvores contentes. Ria o rio Capibaribe, arrastando os bálsamos das algas baronesas por baixo das pontes. Recife estava triste devido às chuvas.

João de Deus atravessou, depressa, a praça Joaquim Nabuco e entrou no hotel, notando o porteiro encorujado. Ofereceu um cigarro, sendo aceito com café a dois, tirado de uma garrafa térmica e entregue um telegrama da Estação Central, destinado ao mesmo com a triste notícia da morte dos seus amigos Rômulo e Mic, em Vitória de Santo Antão e Olinda. Nervosamente fumava cigarros, um em cima do outro. O porteiro o ajudou a subir as escadas por haver faltado energia. Os elevadores estavam parados, parecia que o mundo estava parado. Também um protestante, hóspede do Léa Hotel, vendo o rapazola nervoso disse com precisão:
- Tenha Jesus no coração, fé em Deus, irmão!

Por fim, o rapaz conseguiu deixar o hotel e resolveu se confessar a um padre. Em seguida, vai até a Estação Rodoviária providenciar a passagem de ônibus com destino a Vitória. Ia pensando, olhando a paisagem pela janela do ônibus. Na estrada esburacada o ônibus dava constantes “catabis”.
- Como aquilo poderia ser a realidade? Talvez fosse um sonho. – temeroso – o que é que o doutor delegado de polícia quer de mim? Fui dar o meu endereço, tudo por causa de Rômulo.

Chorava, e ao mesmo tempo pensava em fugir de tudo, suicidar-se. Acreditava ser o único meio de se livrar de tudo o que o atormentava desde criança. A operação que já estava para ser confirmada, o dia, a hora, tudo. Tudo pago pela transação dos amigos de Rômulo e Mic. Ao mesmo instante em que pensava em suicídios, vinha a esperança da operação ser realizada na França e conhecer Paris, o seu sonho.
- Minha Nossa Senhora, ele era tudo para mim! Ele não usava isso, não senhor. Ah, acho que me lembro quando uma vez ele disse para mim: “É a moda, estamos no progresso, só não vou marchar. Qualquer dia eu deixo a ferrovia e vou gozar a vida.”

O delegado levantou as sobrancelhas:
- O pobre morreu. A tempo que nós desconfiávamos dele, você não usa?
- Deus me livre, somente bebida e assim mesmo com moderação. Sei que é o mesmo veneno lento mas, pelo menos, não há proibição.
- Ele dizia sempre: “eu vou marchar?” Como muda os costumes, os jovens de hoje não entendem, mas se disser “dançar”, logo entendem como ir na malandragem de alguém. Você faz um favor pra mim?, lembra-se do nome do filho de um Agente de Estação que chefiou Farol, há três anos passados?
- Estação de trem?
- Sim.

João de Deus passou a mão na cabeça e em seu rosto. O delegado observou que ele estava ocultando alguma coisa.
- É um nome que você procure se lembrar e envie pelo correio endereçado a mim, como também o seu destino, que nada acontecerá com você. O inquérito, farei sem lhe comprometer, só quero que ajude a polícia, procure concentrar-se, que você se lembra.

O delegado já sabia o nome, só faltava prender em flagrante. Sabia por informações, que era um grande traficante de tóxicos e super viciado em jogos de azar, só não sabia o destino e mesmo assim não estava agindo no seu distrito.
- Não adianta, tome um cafezinho e escreva. Você é um rapaz educado, como Rômulo era, mas a vida é assim mesmo. Deve ter tido uma infância muito perturbada. Pelo menos na minha jurisdição você está limpo.

* 13 / 14 (Capítulos do livro “Aonde iremos nós?” – pp. 54-8 – ed. 1983).

** Escritor, poeta e teatrólogo. Blog Fiteiro Cultural – http://josecalvino.blogspot.com/

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