quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Os ossos do barão

* Por Marco Albertim

Toda a extensão da Rua das Quintas cobriu-se de faixas azuladas e brancas; de um poste a outro, partindo do cume, as faixas, com vinte e cinco centímetros de largura, cruzavam-se em diagonal. Por ordem do prefeito Epaminondas Santos, quase não se via um fio da luz do sol, inda que o tecido fino deixasse filtrar a luz, deitando sobre as pedras do calçamento um lusco-fusco estranho; por isto mesmo, os moradores sentiram-se homenageados e cada um pôs a melhor roupa do escasso vestuário.

Numa segunda-feira, finzinho da tarde, quando a fábrica de tecidos, soltando fuligem pela chaminé, desabria o apito. Os operários, ainda com o macacão coberto por fios de algo dão, apressavam os passos para vestir a roupa da véspera, o domingo. Também os operários da usina de açúcar acorreram; os da moagem, posto que os do corte da cana por nada trocavam o pão seco com café ralo, na cozinha das casas do arruado ali mesmo, comprimidas pelo denso canavial.

A Rua das Quintas, tão comprida quanto sinuosa, tem seu final no cemitério. Bem que os curiosos, os mais velhos, podiam pregar nas mangas das camisas ou na abertura do bolso o crepe lutuoso, visto que a cerimônia teria lugar no cemitério; para receber os ossos do barão de Japumim! O dono de engenhos fora dos primeiros a fazer do açúcar de suas terras, mercadoria de exportação; banguezeiro filho de portugueses, deixara que os calungas a seu serviço, construíssem taperas com o massapê extraído do canavial encharcado; dali, dizia-se, nascera a povoação de Goiana.

Justo, dissera o prefeito Epaminondas Santos, prestar-lhe a derradeira homenagem, depositando o que sobrara da carcaça do barão, num túmulo tão cristão quanto reluzente no mármore e no bronze. Os ossos foram tirados de um túmulo distante, nas cercanias do casarão arruinado. O lugar fora coberto pela vegetação rala, sem flores nem indicação de repouso pacífico do barão empreendedor; nenhum indício de que sua alma, no zelo do além-túmulo, espreitasse a pasmaceira do lugar. O prefeito, julgando-se afim remoto do barão, creu-se no dever de deitar o tataravô numa cova elegante, digna de romarias. Obteve sem demora a aprovação dos vereadores, bem como as despesas com a escavação e com a remoção dos ossos. Tivera o cuidado de evitar a palavra enterro, revestindo o acontecimento com tinturas e cores da bandeira da cidade.

As luzes do cemitério foram acesas pouco antes das cinco horas da tarde. O costume era acender depois de o dia escurecer de vez, inda que o relógio da portaria desse conta do fim do expediente do único coveiro; do coveiro e do escrivão servidor de almas, como se intitulava o funcionário do escritório; com o beneplácito de Epaminondas Santos, dos dez vereadores com ele perfilados.

Assim, crânio, mandíbula, vértebras, omoplatas, discos, clavícula, esterno, pelve, fêmures, fíbula, tíbia, ossos dos pés e das mãos, o que restara do operoso barão de Japumim fora juntado e depositado numa urna mortuária; por ordem do prefeito, sem nenhuma semelhança com féretros. As peças foram reunidas por Durval Correia, único boticário de Goiana; alto, careca, rosto cor de cera, narinas treinadas na identificação de odores de laboratório, Durval munira-se de luvas; mesmo os resíduos, fragmentos reduzidos a pó, juntou-os com uma escovinha, recolhendo-os com uma pá menor do que sua mão; com cuidados de paleontólogo.

A urna retangular fora ornada de um tecido azul e branco, do tamanho de um caixão para enterrar crianças defuntas; no salão da Câmara Municipal, entre uma bancada e outra. A semelhança com féretro foi percebida, mas ninguém referiu-se ao assunto; o rosto solene do prefeito Epaminondas Santos não o permitia.

A romaria de curiosos começou pela manhã. À tarde, a partir das duas horas, o microfone foi franqueado para quem quisesse discursar, ressaltando os feitos do barão de Japumim. As bancadas, separadas pelo vácuo do salão, estavam dispostas a aquietar vereadores da situação e da oposição. Epaminondas Santos não tinha oposição para fiscalizar seus atos. A dezena de vereadores, tirando proveito de sua prodigalidade, nunca se recusava ao convite de almoços e jantares na casa do prefeito; para se antecipar à aprovação de seus atos, e cobrir de elogios o tempero da comida de dona Bragantina, a primeira-dama.

No ajuntamento na frente da Câmara, uma pracinha com quatro bancos de cimento, os comentários de boca em boca faziam concorrência aos discursos. Aníbal Fontoura, comunista verboso, não fora eleito vereador. Fazia do Diva – Departamento de Informação da Vida Alheia -, assim era chamada a pracinha, sua tribuna. Ele atravessou a rua, seguido por quatro de seus camaradas. Na Câmara, pediu o microfone. Não podiam lhe negar, não sem evitar constrangimentos. Com a voz ecoando entre as quatro paredes, deixou o rancor a latifundiários subir-lhe a face.
- Os ossos do barão estão aqui porque até os vermes se recusaram a fazer deles uma sopa!


*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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