quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Festival do Filme Etnográfico – Premiações

* Por Marco Albertim

Tava – a casa de pedra, documentário de 87 minutos, transita entre a região de Misiones, Argentina, e as aldeias de São Paulo e Rio de Janeiro, dos Mbya-Guarani. Não é o registro factual de um povo, é a captura de sua memória tão residual quanto viva; o vestígio luzidio, andante, da cultura que não se deixou absorver por espanhóis nem por portugueses; “encomenderos”, os primeiros, rivalizando com as missões jesuíticas. O que não evitou o genocídio dos Mbya – gente. A voz em off é de Fernanda Montenegro. É o que dá conta o filme de Ariel Ortega e Patrícia Ferreira, com o indigenista Vincent Carelli junto com Tiago Torres. As filmagens se deram em fevereiro e março últimos. Prêmio de Menção Especial do Júri – IV Festival do Filme Etnográfico do Recife.

No fundo nem tudo é memória, 75 minutos, faz emergir Ponte Nova, cidade inundada pela construção de uma hidroelétrica. O fotógrafo, Roberto Chacur, soube combinar a densidade da luz com a memória afetiva dos depoimentos de uma dezena de personagens. Os cenários são predominantemente no interior de casas, onde cada objeto é cúmplice das palavras; só o lume de uma lamparina, sob o rosto incendido do depoente. A voz em off de um dos personagens acende o rastilho da memória. “Reconstruir uma cidade, nada mais é do que inventar outra.” A direção é de Carlos Segundo. Prêmio de Melhor Filme Etnográfico.

Cartas para Angola corre o risco de se embiocar na pieguice. As sequências se dão entre a Luanda da Angola do pós-guerra, São Paulo e Rio de Janeiro. A essência de seus 75 minutos é a execração do cisma provocado pela ocupação portuguesa. É melancólico o flagrante de angolanos expatriados. A memória rompe fronteiras, utilizando-se da música, da dança, da poesia, da culinária. Não chega a ser um mea-culpa, inda que nutrindo-se de depoimentos piegas. Faltou-lhe a consistência de uma recusa solene à ocupação colonial. Direção de Coraci Ruiz. Prêmio de Melhor Documentário.

O júri popular consagrou Kadiamor, na mesma sequência de exibição dos seis filmes em que foram mostrados No fundo nem tudo é memória e Cartas para Angola. A diretora, Renata Azambuja, testemunhou a rotina de um grupo de danças e cantos do Senegal. Kadiamor – entendimento – faz da rotina uma coreografia múltipla, enérgica. Moços e moças tão telúricos que não se lhes perdoa a vontade de emigrar para a Alemanha, para a França; compreensível, visto que em meio à adversidade do continente negro. Mas os 73 minutos do filme não os confinam na alienação de povo atrasado. Anunciam-se ricos nos corpos sinuosos, com linguagem própria, na confecção dos adornos; mais que solidários, irmãos. A escolha do júri popular se deu à altura, no instinto, na distinção, da dos jurados nomeados.

Vincent Carelli, indigenista e diretor do premiadíssimo Corumbiara, foi homenageado. Seu filme foi reexibido – na mostra do ano passado também. Corumbiara tem 117 minutos de procura minuciosa do que resta dos índios massacrados na gleba Corumbiara, em Rondônia. Carelli valera-se da denúncia do também indigenista Marcelo Santos. Esperou vinte anos para concluir o filme. De seu longo convívio com indígenas, considera que “o termo preservação não é muito apropriado para se falar de identidade, que é uma coisa que se re-elabora a todo momento, em permanente mudança no convívio entre culturas. “ Sobre massacres, ajunta: “... todo dia tem massacre indígena (...) é um jovem guarani que se suicida, ou uma liderança que é morta por pistoleiros, índios abandonados pelos políticos em Atalaia do Norte perdem suas crianças com desidratação, ou ainda, este mês, índios “bravos” são mortos no Acre.”

Corumbiara venceu o Festival de Gramado, 2009. O circuito comercial não o absorveu. Mais cem cópias serão reproduzidas de seu filme, homenagem da Mostra do Filme Etnográfico.

Outro hors-concours exibido, Paralelo 10, de Sílvio Da-Rin, tem 87 minutos sobre a rotina do sertanista José Carlos Meirelles, ao lado do antropólogo Txai Terri de Aquino. Na base Ximane, Alto Rio Envira, fronteira com o Peru. O filme demandou três semanas de viagem e contatos com os índios Madijá e Ashaninka. Meirelles e Terri tinham o propósito de fazer contato com índios isolados, “bravos” ou “brabos”. Sobreviveu, Meirelles, a uma flechada no rosto; ele próprio arrancou-a de trás da orelha ao rosto, enquanto esperava o socorro. A fotografia de Dante Belluci é minuciosa e apurada, posto que flagra o tempo na paisagem.

O IV Festival do Filme Etnográfico recebeu noventa filmes; dezoito foram selecionados.



*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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