sábado, 27 de outubro de 2012

Clima de perplexidade

O contexto político, econômico, artístico, cultural, social etc. em 1969, ano da realização do histórico festival de Woodstock, tido e havido como marco da contracultura, notadamente no Ocidente, foi muito diverso do que caracterizou o ano de 1985, quando da realização do primeiro Rock in Rio, na cidade do Rio de Janeiro. Nesse aspecto, os dois eventos sequer comportam comparações. O primeiro foi um ato de rebeldia (mais um, de tantos outros) contra o sistema vigente. Já o segundo, pode-se dizer, não teve nenhum caráter de confrontação. Seu teor foi artístico e com o objetivo de lucro por parte dos promotores, no que foram bem sucedidos.

Em 1969, reinava, mundo afora, pesado clima de incerteza quanto ao futuro da nossa espécie, dado o panorama pesado e sombrio que estava desenhado para a humanidade. Pode-se dizer que havia muita perplexidade no ar. A guerra fria, que muitas vezes esteve a ponto de ferver, estava em pleno desenvolvimento, opondo as então duas únicas superpotências do Planeta, que pareciam ser inimigas inconciliáveis, dadas suas concepções tão heterogêneas de sociedade: Estados Unidos e União Soviética. A corrida armamentista atingia o auge, com os dois lados desenvolvendo, e testando, inclusive a céu aberto, artefatos nucleares cada vez mais potentes e arrasadores, produzidos em quantidades absurdamente altas.

Qualquer erro de cálculo fatalmente redundaria na destruição da Terra e na extinção de toda (ou quase toda) forma de vida no Planeta. Dizia-se que, em caso de guerra nuclear, sobreviveriam, apenas, baratas e escorpiões. Centenas de mísseis com arrasadoras ogivas atômicas, pendiam, como sinistra “Espada de Damócles”, sobre a cabeça da humanidade. Esse risco (que entendo não haver desaparecido, embora sequer não mais divulgado) gerava no espírito das pessoas, em especial dos jovens, uma sensação de desencanto, de ausência de perspectivas, de iminência de catástrofe, de desespero até. Não era, óbvio, o mundo que queriam. Desconfiavam liminarmente dos mais velhos. Quem não se lembra do lema “não confie em quem tem mais de trinta anos?” (que na época também foi o meu)?

No Vietnã, milhares de jovens norte-americanos estavam trucidando e sendo trucidados por pessoas que não conheciam, mas que eram induzidos a odiar e a buscar eliminar, numa guerra travada à sua revelia e que, ostensivamente, não poderiam vencer (como de fato não venceram). O mito Charles de Gaulle, que havia se projetado como herói nacional da resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial, começava a ruir, dado seu exacerbado e ultrapassado conservadorismo, que resultou na verdadeira revolução – que lembrava a Comuna de Paris da segunda metade do século XIX – promovida um ano antes por milhares de estudantes nas barricadas do Quartier Latin de Paris, ou de Nanterre, notadamente nos levante de 2 de maio a 16 de junho de 1968.

Em contraposição, o homem mostrava ser capaz de realizar proezas impressionantes, que poderiam ser classificadas, sem exagero, de miraculosas, da qual a de maior impacto foram os primeiros e vacilantes passos dados por Neil Armstrong no estéril e pedregoso solo da Lua. A mídia celebrizou, também, os bizarros “pulinhos” de Aldrin na superfície do nosso satélite natural. Essa façanha “encucava” os jovens de então. Muitos eram céticos em relação à descida na Lua, achando que não passava de truque, dos tantos que se fazem no cinema, com o objetivo meramente propagandístico, para exaltar um dos lados da guerra fria. Muita gente não crê até hoje que essas viagens no espaço, fora da Terra, realmente aconteceram.

Os que acreditaram nisso, a imensa maioria, nem por isso ficaram menos confusos. Provavelmente, sua confusão foi até maior. Ficaram desconcertados com as contradições humanas, principalmente com o fato de o homem ser capaz de dominar o conhecimento para a conquista do espaço e ser incapaz de dominar seus demônios interiores. Achavam contraditório e incompreensível ele poder “velejar” no vácuo infinito e hostil do Cosmo e não conseguir conviver harmonicamente com os semelhantes em seu minúsculo, mas acolhedor planeta, não se entendendo com vizinhos e não raro nem mesmo com os parentes que habitam sob o mesmo teto.

O ano anterior, o de 1968, havia sido de tal sorte violento que muitos chegaram a acreditar que a humanidade não veria sequer o seu final. O líder pacifista, defensor dos direitos civis, o pastor negro Martin Luther King, foi assassinado. Tropas da União Soviética invadiram a Checoslováquia, pondo fim a um efêmero sonho de liberdade do povo checo, que entraria para a História como a “Primavera de Praga”. Robert Kennedy, por sua vez, tornou-se o segundo membro desse célebre clã a ser assassinado, a exemplo do que já havia ocorrido com o irmão, multiplicando a perplexidade principalmente dos jovens.

A mentalidade que se instalava, então, entre milhões e milhões de adolescentes, mundo afora, era a da necessidade de se viver cada momento de cada dia o mais intensamente possível, pois poderia não haver o dia seguinte. A idéia era a de se fazer tudo o que agradasse os sentidos, sem sequer medir conseqüências, face às incertezas do cotidiano.

Os jovens começaram, antes de tudo, por redescobrir o próprio corpo. Dessa forma, rompiam milenares tabus repressivos, sobretudo os que se referiam à sexualidade e partiam para o que os sociólogos e antropólogos convencionaram chamar de “sociedade permissiva”. A nudez viria a perder o caráter pecaminoso e proibido. O advento da pílula anticoncepcional liberou a mulher para a prática do sexo por prazer e não mais com a finalidade exclusiva de procriação. Essa liberação (a meu ver exagerada e irresponsável) seria disseminada em filmes, cartazes, revistas e outras tantas formas de comunicação.

O homossexualismo e o lesbianismo, práticas que sempre existiram, mas foram, por milênios, camufladas, viriam à tona, às claras (o que se acentua cada vez mais nos tempos atuais) chocando e revoltando os conservadores e acirrando sua oposição a esse tipo de comportamento. Para muitos, ali, com essas transformações radicais dos costumes, começava um sonho: o da paz e amor sem limites, em contraposição aos conflitos de toda a sorte em geral e às guerras em particular. Para outros tantos, porém, tratava-se do seu fim. Era a véspera do encerramento de uma era, tal qual havia ocorrido nos dias que antecederam à derrocada do Império Romano do Ocidente, quando os costumes e a moral decaíram e se aviltaram de tal forma a ponto de suprimir da população de Roma a energia e a vontade de lutar contra os invasores bárbaros e de preservar sua civilização.

No afã de fugir da realidade, milhares de jovens passaram a recorrer, cada vez mais, às drogas, algumas das quais lhes davam a falsa sensação de invulnerabilidade e poder, sob o pretexto de que estas lhes “ampliavam a consciência”. Tremenda besteira que praticaram, inspirados por meia dúzia de falsos gurus, destruídos, anos depois, exatamente pelo que tanto apregoavam. Alucinógenos, como o Ácido Lisérgico (o malfadado LSD), passaram a compor o “arsenal” de combate de garotos desorientados e imberbes, mal saídos da infância, ao que chamavam de “caretices”.

Milhares de soldados norte-americanos retornavam do Vietnã (e os que conseguiam retornar até que podiam se dar por felizes), com profundas mutilações, e não somente físicas, mas também arrasados emocionalmente, viciados em maconha, cocaína, morfina, heroína e outras tantas substâncias nocivas a que recorriam nos campos de batalha como muletas que os ajudavam a se tornar insensíveis e assim suportar os horrores e barbaridades que testemunhavam e, principalmente, que perpetravam.

Esse era o perfil e a mentalidade de boa parte dos que participaram de Woodstock. Claro que não se pode generalizar e nem generalizo. Muitos dos que estiveram na fazenda de Bethel para assistir o show foram lá sem nenhuma intenção de protesto e nem de desafio ao sistema, mas apenas por gostarem de rock. Eram pessoas “comportadas”, integradas ao sistema, sem vícios e educadas nos moldes tradicionais. Mas boa parte dos presentes, dezenas de milhares deles, tinha essa característica que destaquei. Em alguns aspectos, o perfil dos que compuseram a platéia do Rock in Rio original, no Rio de Janeiro, o de 1985, era parecido, ou quando muito semelhante (semelhança não pode ser confundida com “igualdade”). Mas em outros tantos comportamentos, eram profundamente diferentes, em especial no que se refere à permissividade.

Boa leitura.

O Editor.

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Um comentário:

  1. Uma análise inesperadamente crua, dura e até mesmo cruel daqueles anos nada dourados. Uma visão revolucionária e que explica muito do que se via. Gostei muito, Pedro! Parabéns!

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