sábado, 27 de outubro de 2012

Chico Pereira

* Por Urda Alice Klueger

(Para Francisco José Pereira, sobretudo meu amigo)

Nem lembro como conheci o Chico – penso que foi na altura em que ambos nos aposentamos e abrimos cada um uma editora, o que significa que não soube dele a maior parte da minha vida, grande prejuízo para quem tinha, no mesmo Estado, ser humano tão maravilhoso para conhecer!

A Editora dele, a Garapuvu, veio à luz fazendo coisas fantásticas, como publicar um livro de contos inéditos de Máximo Gorki; a minha, a Hemisfério Sul, era mais modesta, mas também procurava fazer bonito. Penso que foi aí que nossos caminhos se cruzaram, nessa coisa tripla de sermos escritores/editores/idealistas. Um pouco mais adiante votaria nele para ocupar uma cadeira na Academia Catarinense de Letras, e ele também passou a fazer parte dos quadros do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, e passamos a ser, também, confrades, sem a menor afetação, continuando com nossos compridos papos ao telefone, eventuais encontros em Florianópolis, na cervejinha do Mercado Público em manhãs de sábado e outros encontros assim. Pelo menos uma vez estive na casa dele e conheci sua linda mulher, que com ele enfrentara o mundo e os continentes nos amargos tempos do exílio.

Chico me fascinava sobretudo pela sua história: jovem advogado comunista oriundo da Ilha, botou banca em Blumenau quando eu ainda era criança pequena, naqueles anos de política incerta, quando os padres pregavam na igreja que o comunismo era uma criação do demônio, e pôs-se a defender os injustiçados. Nessa altura (e por muito mais tempo além) as fábricas da minha cidade contratavam qualquer rapaz ou moça de 14 anos que procurasse emprego, pagando-lhes apenas meio salário, por serem “de menor”. Tal situação persistia até eles completarem 18 anos, o que era um grande negócio para os patrões, que tinham a mais vigorosa mão de obra por quatro anos pela metade do custo – pelo que me contava, o carro chefe do escritório do Chico era defender estes adolescentes que começaram a fazer fila na sua porta, o que deixava bem doidos os vorazes burgueses donos das fábricas, que sonhavam em ter sua cabeça a prêmio.

Em 1964 houve o golpe militar, e não deu outra: Chico foi preso e nunca quis me contar das torturas que sofreu – dizia-me sempre que antes de morrer escreveria tais memórias e publicaria um livro. Não tenho notícia se houve tempo para que o fizesse, e continuo sem saber os detalhes desse tempo em que amargou o cárcere nem a forma como conseguiu sair do Brasil para o exílio.

Dias antes do golpe houve na minha cidade a ”Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, e certo já prevendo o que viria, Chico tratou de pôr sua gente a salvo, e foi sua linda mulher quem me contou como, no dia da marcha, enquanto a mesma descia a rua XV, na altura do Prosdócimo, ela subia pela calçada, abraçada a uma criança e carregando uma sacolinha com tudo o que estava levando na fuga. Em algum momento, mais adiante, os dois se encontrariam para viverem o exílio juntos. Também poucos detalhes sei do exílio, mas ele levou meu amigo a viver na distante Rússia, no gentil Equador, na doce Moçambique – sabe-se lá aonde mais? Sempre tive a sensação de que auferira doçuras nesses lugares do exílio, embora imagine o quanto seja dura a condição de expatriado. Penso que tanto demorei para conhecer o Chico porque na altura em que eu crescia e emplumava, andava ele por outras terras e não havia como saber dele.

Um dia pode voltar, e fixou-se, então, em Florianópolis, mas bom tempo ainda se passaria até nossas aposentadorias e nossas editoras, e de repente tínhamos nos tornado amigos. Chico me mandava os lançamentos da Garapuvu; eu lhe mandava os lançamentos da Hemisfério Sul; e havia os longos papos ao telefone e eventuais encontros no Mercado Público, mas eu gostava dele mais do que se ele fosse meu irmão, algo assim como a gente gosta de um ídolo que nos fascina, por exemplo, de tanto que admirava a sua coragem e a sua trajetória.

Não prestei atenção quando houve um silêncio, quando Chico como que sumiu do meu telefone. A gente sempre acha que mais adiante vai reatar os laços, mas nem sempre é assim. Não me parecia possível que o Chico poderia adoecer, e levei o maior susto quando, em julho deste ano de 2012, soube que ele partira para não mais voltar, se bem que alguém como ele não parte verdadeiramente nunca. Céus, Chico, quantas coisas fiquei sem saber a teu respeito, e penso agora se chegaste a escrever o que não me contaste! Espero, mais cedo ou mais tarde, encontrar a tua gente para lhe dar o abraço doído que ficou aqui dentro de mim.

Até mais tarde, meu amigo!

 
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

Um comentário:

  1. Há pessoas com as quais nos identificamos instantaneamente. Parece ser o caso entre você e Chico, Urda. Feliz de você que viveu essa amizade. O ruim da morte é que não dá tempo para despedidas.

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