terça-feira, 30 de outubro de 2012

As valentes mulheres de Schorndorf

* Por Rubem Costa

Uma saga. Façanha sem igual de coragem e ousadia. É o que hoje vou contar em homenagem à mulher. Aos desavisados, pode parecer uma comédia. Entanto, em sua perenidade, na distância dos séculos, é drama que fala à dignidade do ser.

A exemplo do que ocorre com muitas antigas vilas da Europa, cuja história está ligada à evolução do mundo, Schorndorf, pequena cidade da Alemanha, guarda a memória de comoventes episódios que edificam a vida e justificam a presença do homem na terra. Possuindo, ainda hoje, menos de quarenta mil habitantes, seria apenas uma entre as muitas localidades de exígua população que enxameiam a história, não fora o culto que devota — e com razão — a quase oitocentos anos de crônica incomum. Vivida e sofrida. Na limitação de suas divisas, reúne um povo pequeno no tamanho, mas que tem muito para se vangloriar do passado e bastante para falar no presente. Pode dizer, por exemplo, que foi centro de um dos momentos mais altos da civilização ocidental, já que ali nasceu e se criou o engenhoso personagem que ajudou a modificar a face do mundo, traçando o perfil de uma nova era — Gottlieb Daimler, inventor do primeiro veículo a motor que circulou na Terra, — o automóvel — e que, ao associar-se a Karl Benz, iria promover a revolução do transporte com a instalação da célebre indústria — Mercedes-Benz.

Tem méritos para enaltecer a visão cultural dos antepassados que já em 1357 promoviam uma revolução no conceito de educação, fundando uma escola de reputação continental — o Colégio de Latim. Duas ocorrências que credenciam um povo ao respeito da humanidade. Entretanto, entre os memoráveis fatos que a cidade proclama e reproduz com orgulho, o que mais lhe fala à alma e se amplia na emoção, está representado no mosaico em pedra natural de autoria do artista de Gottfried Stockhausen (1965) que ornamenta a face norte do atual edifício da Prefeitura e traz no topo a solene denominação: “Die Schorndorf Weiber” — “As boas mulheres de Schorndorf”.

É um mural em que se deposita o enlevo da gente que resguarda no coração a ternura de gesto que, vindo de tempo remoto, sussurra ao orgulho da era presente. Simbolizando a virtude de uma geração, ali está em pedra o quadro, granítico para que se não desgaste na intempérie e conserve imperecível na memória da gente a grandeza de uma atitude. Posta na parede externa, para que a todos seja permitido ver, está a estampa da coragem — a mulher que deixa sua casa e vai para as ruas defender a cidade porque nela está a família — base de seu lar.

E não para aí. Fora das ruas, no albergue da cultura, a devoção é agasalhada no Museu Municipal que estadeia o evento em dose dupla, visto que além de um quadro a óleo, exibe também em mármore a figura de três aldeãs em posição de combate, ostentando nas mãos, como armas de luta, ferramentas de lavoura: foice, ancinho e enxada. Isso tudo para perpetuar o dia supremo em que as mulheres, sobrepondo-se à timidez dos homens, ganharam a guerra.

Para entender esse momento imperecível, convido-o, paciente leitor, a acompanhar-me até a chamada Markplatz — Praça do Mercado —, atual centro urbano de Schorndorf. Entre sombras do passado, ali sobrevive uma casa secular que ostenta na fachada uma placa comemorativa com os dizeres: “Aqui viveu a prefeita Anna Bárbara Künkelin que no ano de 1688 — com moradoras de Schorndorf — expulsou os soldados do General Melac”.

O episódio se explica com a recapitulação de um acontecimento célebre — a Guerra dos Trinta Anos — em que se confunde uma série de conflitos - travados sobretudo na Alemanha, entre 1618 e 1648 — que envolveram boa parte da Europa ocidental. O fundamento era a luta religiosa entre católicos e protestantes. Todavia, mesmo depois de assinado o tratado de paz, nem todos os exércitos respeitaram totalmente o armistício e se recolheram às bases. Assim, entre os transgressores, interessada em se transformar em uma potência, estava a França que, sob inspiração do Cardeal Richelieu, manteve atrevidamente parte do seu exército na Alemanha, com predominância na região de Sttutgart.

Dali, sob o comando do General Melac, as tropas partiam para subjugar as cidades próximas. Consequentemente, se propuseram também a sitiar Schorndorf, localidade pequena de precários recursos de defesa. Era um ato de ultraje, porque, não havendo guerra declarada, violando a ética, esperava Melac que a cidade intimidada se entregasse pacificamente. Em verdade, os homens indecisos tremeram diante da ameaça, porque, além da perda da liberdade, temiam o pior — o estupro de esposas e filhas. E assim teria acontecido, se não fosse a ousadia de uma virago destemida, nascida para liderar. Anna Bárbara Künkelin. Destemida, guardiã de avoenga tradição germânica, saiu à frente. Organizou os homens e arregimentou as mulheres. Todas, sem exceção. E colocou em prática uma estratégia inimaginável que seria risível se não fosse extremamente ousada e inteligente. Deixando os homens à retaguarda, dotou as mulheres fortes com as precárias armas de luta disponíveis: foice, enxada, ancinho, garfo e marreta.

Nas janelas das casas abertas de par abertas para a rua, colocou as velhas, as inválidas, as doentes e fracas — de traseiros desnudos voltados para a rua. Um desafio. Os emissários franceses, que vieram para exigir a rendição incondicional da vila, espantaram-se diante do espetáculo inédito, quase absurdo, panorâmico, de mulheres de armas na mão nas ruas, de mulheres de bunda de fora nas janelas. Riram primeiro, mas em seguida aturdidos, entenderam o recado que Anna Künkelin lhes estava dando. As mulheres ali estavam — prontas para lutar. Não tinham medo de se expor, porém iriam até a morte para defender a sua honra e a dignidade do lar. Melac compreendeu o perigo da aventura. Recolheu as tropas e se retirou, deixando a cidade em paz. Para sempre. É por isso que na velha casa da Praça do Mercado está escrito em letras góticas — “Aqui viveu a prefeita Anna Bárbara Künkelin.”


* Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.

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