quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Tinhoso – V

* Por Fernando Barreto

Capítulo 5- Son cosas de la vida

‘A riqueza não tem o direito de patrocinar a arte’ - William Saroyan


Miro salvar-se-ia escrevendo, assim que alguma coisa simples e repentina acontecesse. Era a única sorte com que aquele sujeito podia realmente contar naquele período de sua vida. Ao contrário de Saroyan, pensava que a riqueza tinha todo o direito de patrocinar a arte. Achava também que separar a arte de atividades mercadológicas era algo ultrapassado. Já estava ficando velho para o descontrole juvenil das drogas e dos devaneios revolucionários típicos da primeira juventude. Mas ainda era jovem para escrever algo digno de ser chamado de literatura adulta.

Ele pensava que ‘Literatura Marginal’ era uma classificação usada no Brasil para categorizar escritores muito ruins, e que pouco tinham de marginais, seja no estilo de vida, seja no conteúdo do texto. Geralmente era feita por gente de classe média, tornando-a ainda pior, o que deixava Miro preocupado e até certo ponto desencorajado.

Era preciso tentar algo para sair de sua obscuridade desesperadora, mas sempre calcado em alguns princípios, ainda que nem sempre fossem aqueles considerados ‘éticos’ ou ‘morais’ pela classe média. As classes alta e baixa não precisam se preocupar de verdade com esses padrões, porque a primeira não tem muito com que esquentar a cabeça, porque tem dinheiro para mandar comprar o que for necessário para superar as dificuldades, e a segunda não tem muito a perder, pelo menos no que diz respeito a bens materiais.

Miro poderia tentar a vida política como um ator, como um mentiroso talvez, emergindo por meio de algum partido poderoso de direita. De qualquer maneira, no fim do dia poderia ir pra casa, fechar todas as persianas e ninguém iria invadir sua alma.

O pai de Miro tinha um amigo de longa data que era vereador. Ao longo de sua infância, Miro, que era afilhado do vereador, via naquele sujeito um canal para que se solucionasse problemas, daqueles verdadeiramente dramáticos, que a grosso modo todos os humanos estão sujeitos, de uma maneira ou de outra. ‘Talvez eu devesse entrar nessa um dia’- pensava Miro que via aquele homem de sorriso cafajeste se acabar em gargalhadas toda vez que contava sobre as picaretagens de seus colegas e de políticos que estavam acima dele na hierarquia.

Esse vereador tinha sido colega de faculdade do pai de Miro. Tinha verdadeira tara por donas de casa com idade entre 40 e 45 anos, casadas. A mãe de Miro nunca chegou a ser realmente apalpada ou mais brutalmente bolinada pelo vereador, mas foi por algum milagre. O torpor alcoólico atingido em todas suas visitas aos domingos por muito pouco não fez com que o vereador partisse para a ação ali mesmo na cozinha da casa de Miro. Sentia uma vontade cretina de chegar junto por trás enquanto a mãe de Miro fazia café para beijar-lhe o ombro, tanto na pele como na alça do sutiã. Miro era uma criança quando essas coisas estavam muito próximas de acontecer.

Sim, o Senhor Vereador gostava de vê-la fazendo café com a alça do sutiã à mostra. Ele bebia algumas doses de uísque antes do almoço e o pai de Miro roncava de boca aberta na poltrona, babando horrores, enquanto o homem de terno tinha ereções que lhe umedeciam aquela parte de sua cueca de seda em que sua glande ficava acomodada, latejando, enquanto pensava na possibilidade da mãe de Miro ser uma mulher insatisfeita sexualmente em função da monotonia de um casamento padrão, de fachada.

Temas como o abandono por parte da família, seja por qual razão fosse, ou falência financeira completa, ou ainda a falta de uma casar para morar, eram algumas das inseguranças que atormentavam Miro até a fase final de sua adolescência. A fuga disso tudo através da política poderia salvá-lo. Provavelmente esse caminho seria menos árduo do que doar todo seu tempo para criar histórias literárias, sem ter qualquer garantia de sucesso, seja financeiro ou de qualquer outro tipo. E o caminho da política seria ainda menos árduo do que doar sua vida para um emprego comum, num banco ou numa repartição.

Tinha consciência de onde poderia chegar em termos de qualidade literária, reconhecendo sempre que seu grau de erudição e de intelectualidade não atingia um patamar alto o bastante para que nesse quesito pudesse ser considerado um sujeito diferenciado. Tentava o estilo Hemingway, onde a economia e a objetividade deveriam predominar. ‘Menos é mais.’ Isso valia não só para a literatura, mas para a vida. ‘Precisar pouco é ser rico’. Essa era outra frase que adotou para formatar seu estilo de vida. Em contrapartida, sabia também que estava longe de ser o menos articulado dos humanos. Essa combinação de fatores constituiria o seu estilo literário. Tinha como estímulo o fato de não gostar de nenhum escritor paulistano de sua geração. E faria o que fosse necessário para que não produzisse nada aparentado com o jornalismo brasileiro padrão.

Não conseguia livrar-se da impressão de que todos os escritores com menos de 40 anos que escreviam sobre São Paulo e que supostamente viviam na cidade, eram tristes habitantes de apartamentos de médio porte e bem localizados, e que por alguma razão, que para essas pessoas e para seus leitores poderia ser simples, esses escritores não precisavam preocupar-se com despesas e outras chateações cotidianas, e dispunham de tempo para dedicarem-se exclusivamente à literatura e ao ócio. Conseguiam ser publicados, por qualquer que fosse a razão, mas jamais por mérito literário. Tudo que era produzido por essa gente parecia ser apenas um jogo estéril de palavras.

Nascido em família de classe média, Miro àquela altura já não tinha mais tanto medo da falência financeira completa, porque ao mesmo tempo em que via com pessimismo a forma com que manifestava sua capacidade de manter sozinho seu padrão de vida, abrindo mão de certas comodidades nem sempre supérfluas, pensava também que sempre ao seu redor haveria de enxergar humanos em circunstâncias verdadeiramente desesperadoras. Essas pessoas nem sempre agiam do modo como Miro o faria caso estivesse no lugar delas. Para ele, essas pessoas eram o verdadeiro problema. Considerava que a burrice delas podia ser vista como resistência ou uma autodefesa para as dificuldades impostas pela vida. As outras pessoas, aquelas que manifestam um desespero proporcional à situação em que se encontram, talvez merecessem sua compaixão.

Miro, então com 31 anos e portanto já não tão jovem, havia caído nos mais inacreditáveis clichês da vida dos garotos que se tornam homenzinhos com o pinto louco e com necessidade de auto afirmação. Certa vez, antes de mudar-se para o Centro, envolveu-se com uma garota de Araçatuba numa festa de universitários. Cerca de dois meses ela depois descobriu seu endereço na capital. Fez um aborto e levou o feto dentro de um vidro de maionese para Miro ‘assumir’. Sugeriu que Miro colocasse o vidro em sua prateleira de Lp’s, como artigo decorativo. E Miro tinha milhares de discos de vinil, comprados desde a infância com trocos de padaria que não devolvia à sua mãe, e também com o dinheiro da condução que economizava quando cursava o que hoje se chama de ensino médio. O único bem material pelo qual tinha esmero de verdade era sua coleção de discos.

Miro estava criando para si a árdua e ingrata missão de tornar-se um anti-herói descompromissado com qualquer paradigma relativo às velhas, limitadoras e opressoras formas de se conduzir a vida. Encontrou um nó em seu caminho que só poderia ser desatado se deixasse de lado alguns caprichos e comodidades de sua vida de garoto de classe média.

O curioso é que essa sua idéia de tentar tirar da literatura sua sobrevivência era mais um capricho. A ‘vida suja’ de escritor teria que ser alimentada, na pior das hipóteses, com latas de atum e miojo guardados na dispensa. Não se tratava exatamente de ‘arte pela arte’.

Tentaria a literatura como saída porque via nela algumas vantagens que na música, por exemplo, não encontraria. Com lápis e papel poderia escrever efetivamente. Sem equipamentos e sem parceiros de banda que viram empecilhos quando surgem as primeiras divergências musicais e pessoais. O que importava para ele é que ficasse para a posteridade um trabalho autoral convincente.

O analfabetismo de muitos brasileiros, somado à falta de interesse pela leitura por parte daqueles que são alfabetizados, dá um caráter alternativo à arte dos escribas. Isso atraiu para a literatura, nas suas diversas versões modernas, muitos 'escritores' pobres de capacidade. Havia mudado da casa dos pais tardiamente, pelo menos para os padrões burgueses. Estava com 31 anos de idade quando saiu do apartamento em que vivia desde que nasceu, na Pompéia. Tomou muito toddy e comeu muita granola ali na zona oeste.

Foi viver numa quitinete na Boca do Lixo, a região mais suja do centro de São Paulo, exatamente onde muitos escritores paulistanos ou radicados em São Paulo criam histórias para se autodenominarem 'escritores marginais'.

Seu pai era o proprietário de seu novo apartamento e viveu ali quando era solteiro e cursava Direito na Faculdade do Largo São Francisco. O imóvel estava alugado havia muitos anos, desde meados dos anos 70, quando conheceu a mãe de Miro e pouco depois começou a constituir família e procurou por um imóvel maior.

Era um período de derrocada para a região central da cidade que então já parecia repugnante e degradada demais para os padrões burgueses da classe média paulistana, mas que ainda assim era um imóvel interessante para que dele se tirasse algum dinheiro, seja com o aluguel, ou uma futura venda.

Ficava no meio da região que mais tarde se tornou a Cracolândia, e Miro propôs à sua família que com a saída do inquilino, assumiria as contas, que para ele se limitariam ao condomínio e conta de luz e iria viver ali. Estava disposto a procurar um emprego comum, que servisse não só como fonte de renda, mas principalmente como uma das fontes de matéria prima para seus escritos.

Sabia que algum sofrimento, principalmente aquele oriundo do convívio com a grande massa anônima trabalhadora de São Paulo lhe traria amadurecimento e faria com que tivesse de fato sobre o que escrever. Miro acreditava de verdade que as experiências mais amargas eram realmente importantes, porque supostamente o fariam ir até a frente do computador e escrever.

A matéria-prima para sua literatura poderia ser tirada da simples observação do comportamento das pessoas, principalmente as de uma classe social mais baixa do que aquela na qual vivia na zona oeste. As histórias já estão todas lá, no cotidiano. As pequenices da vida em meio a um cenário desolador. Bastaria trocar os nomes dos moradores anônimos da região e então essas pessoas jamais saberiam que estavam sendo citadas em histórias que seriam escritas como um meio do autor tentar se rebelar contra as causas de seu sofrimento. São pessoas que mal sabem ler, e que não teriam interesse algum por uma literatura produzida com a intenção de ser alternativa.

Conhecendo suficientemente a si mesmo, Miro acreditava também que algum sacrifício o afastaria um pouco do alcoolismo crônico que vinha desenvolvendo desde os dezessete anos. Gostava demais de se embriagar todas as noites. Tinha muita sorte por não ter precisado beber aguardentes ordinários naqueles tempos. Bebia boas bebidas que seu pai ganhava e deixava decorando prateleiras do apartamento e que eram substituídas por líquidos não alcoólicos com a coloração semelhante.

Queria passar a tomar seus tragos somente nos fins de semana, depois de uma jornada diurna de trabalhos físicos em algum emprego comum, e uma outra jornada, essa intelectual e noturna, em sua empreitada literária. O desafio era conseguir o tempo e a solidão necessária para escrever boa ficção. A desintoxicação alcoólica ficaria facilitada com essa rotina que mantivesse seu tempo ocupado.

Elvis era um empecilho nessa empreitada, pois bebia todos os dias da semana e Miro sentia-se culpado por censurá-lo, já que pensava que nenhuma outra pessoa era responsável pelo período em que ele próprio abusou da bebida, fazendo com que a coisa chegasse num ponto em que tivesse que controlar a situação por meio do sacrifício da abstinência. Sabia que aquela era a hora para tentar controlar o vício, caso contrário seria cada vez mais difícil conseguir.

Os novos vizinhos da Cracolândia, principalmente os que ali tentavam viver dignamente, serviriam como parâmetro para a visão que Miro aos poucos desenvolveria de um futuro não tão longínquo para si mesmo. Projetava em alguns desses novos vizinhos a imagem que tinha de si mesmo quando finalmente atingisse a maturidade. Idealizava para si uma condição de estabilidade financeira e reconhecimento por seu trabalho artístico, mas sem deslumbramentos ou estrelismos exagerados. Quando a velhice chegasse pra valer, poderia se mudar do Centro para um sítio.

Havia um vizinho de porta que Miro observava com mais atenção. Nei morava no apartamento 809 e era um velho comerciante aposentado que todas as manhãs acordava triunfante para buscar muitos pães franceses quentes na padaria da Boca do Lixo, e que voltava para seu apartamento para dali só sair para uma eventual cerveja antes do almoço, nas redondezas. Era um homem de aproximadamente 70 anos, com fortes convicções político-ideológicas, mas sem uma próspera aposentadoria e com poucas perspectivas de futuro. Uma vida inteira de trabalho. Agora tinha reumatismo e asma. Um espírito conservador, que se revelava orgulhoso na maturidade. Dizia-se viúvo, mas alguns vizinhos diziam que sua ex-esposa ainda estava viva. Ela teria feito alguma coisa que magoou o velho Nei.

Fisicamente, Nei parecia um Jack London envelhecido. Sempre que via Miro ou Elvis bebendo algo alcoólico lhes contava sobre a paixão que tinha pela bebida. Naquele momento de sua vida, embora não tivesse abandonado totalmente o vício em álcool, já tinha diminuído drasticamente o consumo e sentia os danos causados pelo excesso de bebida ao longo da vida. Tinha problemas crônicos no fígado, no pâncreas e nos rins. Tomava muitos remédios diariamente. Não podia mais tomar bebidas fortes, destiladas. Bebia algumas cervejas por semana.

“Sinto-me estúpido por controlar meu consumo de álcool a essa altura da vida. Penso que deveria tê-lo feito quando era mais jovem. Isso talvez tivesse sido estupidez também. Talvez eu devesse começar a relaxar com bebida a partir dos 50 anos. No entanto, agora que pareço estar fazendo hora extra na vida, fico me preservando e passando vontade de beber como nos velhos tempos. Eu realmente não sei do que tenho me preservado. Deve ser porque gosto de me manter vivo. Mas penso que talvez fosse mais coerente tornar-me mais bêbado à medida que envelheço. Gosto do êxtase da mente. É disso que sinto falta na bebida. Tenho plena convicção de que uma pessoa sem vício algum é alguém com poucas virtudes. Tenho tentado me contentar com duas latinhas de cerveja por dia. Isso me ajuda a refletir sobre minha vida com mais clareza, e no final desses pensamentos, quase sempre percebo que as verdades sobre mim mesmo pouco importam”- disse Nei certa vez ao ver Miro quando este estava colocando o lixo para fora, carregando o saco preto com uma mão e levando uma garrafa de Stella Artois com a outra.

O velho Nei podia, no entanto, aproveitar os dias que lhe restavam observando a derrocada da humanidade através de sua janela, mas não podia imaginar que Miro o invejava por isso. Miro invejava-o só até o final da tarde. O pobre velho tinha crises de tosse durante quase todas as noites, que faziam com que Miro então repensasse se uma vida daquelas era realmente algo pelo qual deveria ansiar. Uma vida com ciclos curtos. Triunfo matutino, desolação vespertina, agonia noturna.

Nei dizia que era preciso saber lidar com o povo que habitava os grandes prédios do centro, com quitinetes lotadas, famílias inteiras amontoadas, com três ou quatro crianças, dividindo 30 ou 40 metros quadrados com pelo menos um adulto.

“Miro, com essa gente é preciso agir com discrição. Não dê confiança pra essa gente. Dê dinheiro se for o caso, mas jamais dê confiança. Morar aqui não é como morar na Pompéia. Pode-se conseguir uma certa privacidade dentro de nossos apartamentos, mas a cada vez que saímos para ir à padaria ou para o que quer que seja, estamos sendo observados e comentados por gente que não tem nenhuma classe. Você ainda é jovem e veio atrás de aventura, ou sei lá do que. Vejo que você se interessa por gente marginalizada, por derrotados e por desajustados. Saiba que isso é mais interessante nos livros do que na realidade. Aproveite as vantagens do Centro, mas fique atento. Lembre-se que quem não é visto, não é lembrado. Sou um velho aposentado anônimo. Queria ter hoje mais disposição e mais dinheiro. Já que isso não posso mais ter, vou fazer o diabo pra aproveitar incógnito minha modesta aposentadoria” – dizia Nei, que parecia conseguir passar pelos corredores sem ser incomodado. Miro acreditava que Nei conseguia isso por causa de seu comportamento discreto e de sua expressão facial severa.

Uma vez por semana, uma mulher negra e magra com cerca de 50 anos ia à casa de Nei para deixar-lhe comida pronta para ser congelada e lavar-lhe as roupas e limpar a casa. A semelhança física dela com Miles Davis era muito impressionante e comovente. Sempre que a viam chegando ou a ouviam trabalhar no apartamento de Nei, Miro e Elvis imediatamente trocavam o disco que estavam ouvindo para tocar algum de Miles.

Não fosse tão desleixado, Miro poderia fazer um esquema empreendedor em seu pequeno apartamento. Eram apenas aqueles 40 metros quadrados, mas só para ele, e havia ali condições para que seu projeto de vida simples e com privacidade se firmasse, mesmo num prédio com mais de 700 pessoas. Havia ali uma poltrona revestida com um pano vermelho e tosco que seus pais jogariam fora, duas estantes de metal cheias de discos de vinil, um televisor de 16 polegadas, um colchão que era usado por Miro (para não gastar com o transporte e economizar espaço na quitinete, deixou sua cama no apartamento dos pais), e pôsteres dos Ramones, Van Halen da fase David Lee Roth, Beatles, Stones na fase Brian Jones, Depeche Mode e Cure.

As primeiras semanas de Miro na região da Cracolândia não foram tão fáceis, porque não se empenhou de verdade para procurar um emprego, ainda que temporário, só para colocar as coisas nos eixos. Tentava dar ênfase à sua produção literária. Continuava a contar com o acaso. Apenas aconteceria algo simples e repentino e então as circunstâncias estariam a seu favor.

O cheiro do café e do pão quente na chapa que vinha do apartamento de seu vizinho era o que fazia com que sentisse alguma inveja. Miro tinha desistido totalmente da idéia de explorar um pouco da fome que sentia em prol de sua arte. Podia usá-la como combustível criativo. Infelizmente para ele, quando estava sem dinheiro e com tempo sobrando preferia praguejar até que alguma coisa acontecesse e remediasse a situação. Não gostava dessa idéia de que a fome pode ser útil para artistas basicamente porque queria tirar da arte um bem estar material. Em seus devaneios a vida de um homem dedicado às letras tinha um sabor bem mais especial do que se tivesse tirado dinheiro de um trabalho em alguma repartição, por exemplo.

O total descomprometimento e despreocupação do velho Nei com o futuro (àquela altura poderia ser diferente?) também lhe parecia algo atraente em alguns aspectos. Evidentemente era preciso levar em conta o fato de que Nei já tinha vivido sua vida no período em que teve o vigor da juventude. Não se tem descompromisso completo com o futuro quando se sabe que esse futuro existe.

O velho Nei nunca mais teria de volta o vigor de outrora. Seu corpo e sua mente já haviam sofrido duras punições ao longo da trajetória de serviços prestados à sociedade cumprida. Mãos calejadas, músculos salientes, mas cansados, trajando camisetas de propagandas de pilhas, tintas, da Sabesp. Sapatos e meias de cobrador de ônibus. Parecia ser daqueles caras que não iam fazer exame de toque.

Ali estava um combatente que havia vencido o medo, e que tinha adquirido alguma clareza com sua vivência, mas que começava a sucumbir à velhice. Se a jornada de um homem for longa, quando a velhice chega passa a ser seu último inimigo. É um algoz do qual não se pode escapar. De qualquer forma aquele homem estava acima da média da vizinhança, em todos os aspectos.

Miro sonhava em aproveitar o que sobrou de sua juventude para fazer saques de aposentadoria nos bancos (queria estar aposentado logo, por qualquer razão simples, que não fosse por tempo de serviço e nem por invalidez), gastar na padaria, olhar para ontem com alguma nostalgia, mas sem saudade, e vadiar, e escrever, num meio termo entre o amadorismo e o profissionalismo no ramo das letras. A produção teria que ter qualidade, mas poderia haver tempo entre um livro e outro, para que o público pudesse sentir falta de suas idéias e para que ele não se tornasse um autor repetitivo.

Em seu íntimo, Miro nunca sentiu culpa ou vergonha por conversar consigo mesmo sobre a forma como adoraria tirar proveito da arte para fins meramente econômicos, e mesmo assim não a desrespeitar. Absolvia-se em seu auto julgamento pelo fato de que para ele essas suas pretensões financeiras eram modestas. O que também é discutível, uma vez que não parece ser tão modesta a pretensão de ter comida, viver sozinho, algum dinheiro e não ter que propriamente trabalhar de uma maneira convencional. Não era um vagabundo, apenas tinha problemas de relacionamento com pessoas pouco obstinadas e que não tem gosto pela arte.

Queria ter uma vida longa, mas sabia que se pensasse demais em como ficaria no fim da trajetória, não tardaria para jogar tudo para o alto e voltar para a bebida. Sentia-se dependente de álcool porque tudo parecia tedioso quando não bebia, e era íntegro o bastante para não censurar ninguém que bebesse na sua frente quando queria manter-se sóbrio.

Era preciso se apegar ao seu entusiasmo pela produção literária da mesma forma que um velho viciado se apega às delícias de encontrar uma veia intacta para se picar. Todas as veias do braço estão completamente desgraçadas. Ele então pica uma veia do pé, o salafrário. Não vai ter ninguém por perto para julgar.

O viciado vai dar um jeito, e as consequências do ato virão de uma forma implacável, mas a morte e o perigo são sempre iminentes, de qualquer maneira. A vida é como aquele garçom assexuado ao qual você precisa saber como pedir o que deseja. Você o faz, e então lá vai o garçom buscar seu pedido. Cedo ou tarde ele traz a conta também. Todos recebem a conta no final do rolê. O tal garçom da vida poderá parecer ao moribundo um ser ridiculamente repugnante, como alguém com sorte por ter alguma sobrevida.

Miro tinha de sua janela a mesma visão do centro que seu velho vizinho Nei. O prédio em que viviam era situado na Avenida Rio Branco, entre as ruas Aurora e Vitória, e a janela de Miro era virada para o bairro da Luz, um foco de intensa atividade droguística noturna, com todas aquelas vidas em putrefação, mortes insepultas e outras disfunções sociais. Podia ver o movimento externo da delegacia da região.

Os filósofos são os médicos da civilização, que hoje é uma doente terminal porque nunca atendeu às recomendações dos especialistas em saúde social. Naquela área da cidade Miro via a civilização definhar da maneira que merece. O nóia descontrolado que perambula por ali desesperado por mais uma pedra é da mesma espécie que o burguês porco capitalista com o suéter cor de salmão sobre os ombros e que ganha uma enormidade de dinheiro com ações e que merece tomar uma canivetada na bunda quando sair do teatro, na calada da noite.

São tipos humanos igualmente repugnantes, que pensam que viverão eternamente em pontas opostas da sociedade, mas que representam, cada um, a ruína um do outro. Essas pontas invariavelmente encontram-se, ainda que ocasionalmente. Nessa hora o nóia causa um transtorno, mesmo que rápido, e nesse momento ele terá diminuído sua distância social para com o playboy, que leva vantagem durante todo o resto do tempo.

Miro era fascinado pelo Centro Velho de São Paulo, e queria ter mais tempo ocioso para olhar a região de sua janela e andar pelas redondezas sem que estivesse com a sensação de ser esmagado pelo relógio. Gostava de observar aquela gente vivendo num limbo moral e espiritual, e quando à noite ia para a cama, Miro gostava de pensar no que se passava nas esquinas da Cracolândia, na política nefasta da droga que fazia com que os nóias rastejassem por onde fosse necessário para fumar a próxima pedra. Nem a vala mais imunda parecia ser ordinária o bastante para aqueles caras.

Sabia, no entanto, que se tivesse esse tempo para o ócio, entregar-se-ia novamente ao alcoolismo e nada produziria de literatura. Não pensava que uma vida assim fosse realmente baixa ou repugnante, mas naquele momento sentia-se mais atraído pela construção de uma obra autoral, para que seu nome e o título do trabalho continuassem o representando nas prateleiras de livros do mundo.

A primeira dessas obras seria formada por contos que escreveria baseando-se em suas vivências e andanças pelo Centro e inspirando-se nas pessoas que conhecesse nesse período. Em geral, pessoas sem rosto, sem alma, sem vida.

Havia algo que realmente o atrapalhava em sua produção. Era a confusão na qual regularmente via-se submerso, por não ter qualquer senso prático para tarefas cotidianas, algumas delas básicas. Um equilíbrio perfeito entre uma vida reclusa e movimentada e entre o sucesso como escritor e as comodidades de um anonimato honesto quase sempre pareciam ser algo inalcançável. Até que ponto conseguiria refugiar-se em suas excentricidades?

Miro tinha uma mente confusa. Esperava conseguir alguma estabilidade emocional e financeira antes dos 40 anos para focar-se na produção de um romance. Algo em torno de 250 páginas. Não chegava a ser uma obsessão, mas uma realização que poderia render-lhe algum tipo de credibilidade literária. Não achava que o conto fosse uma modalidade menor, apenas pensava que a composição de um romance fosse um limiar importante na formação de um escritor.

A produção de uma narrativa mais longa e detalhada, com personagens mais complexos, cenários mais detalhadamente descritos e tramas mais elaboradas. Isso era algo que exigiria de Miro um poder de concentração e uma entrega ao trabalho que ele ainda não havia experimentado.

Sentia-se razoavelmente bem por ter esperado que suas chances de se tornar escritor amadurecessem um pouco. Sabia que isso significava basicamente que ele não teria a partir de então tantas alternativas a seguir no que dissesse respeito a escolher um ofício definitivo. Um emprego ruim também pode favorecer a produção literária, é algo que sempre esteve intimamente ligado à vida de inúmeros escritores, como se sabe. Todos os empregos comuns pareciam muito ruins. Todos esses empregos fazem com que o trabalhador esteja sujeito a dias sofridos por conta de relações humanas no trabalho e também por chuvas ou greves inconvenientes no transporte público que destroçam o esquema cotidiano do cidadão médio.

Sonhava em esculpir boas histórias ao longo dos dias, exorcizando uma série de demônios pessoais, e não mais sofreria naqueles dias de chuva em que se chega com a meia molhada no trabalho, com a moral arruinada e horas de transtorno sendo subalterno de gente sem alma, que dedica-se a um tipo de trabalho burocrático e sem função real. Gente que se dedica de uma maneira burra a um trabalho burro. Telemarketing, órgãos públicos que historicamente não funcionam, lojas de Shopping Center que vendem coisas inúteis para gente inútil.

As chuvas continuariam a existir, mas ele estaria dentro do apartamento, com gosto de cigarro e café na boca, uma cueca puída e os pés descalços, e à medida que seu corpo fosse ficando mais velho e flácido, a dívida relativa à maturidade intelectual que havia imposto a si mesmo anos atrás, estaria sendo paga.

A idade avançaria e então Miro poderia ir embora do Centro, sabe-se lá pra onde. Provavelmente para um sítio em Itapecerica da Serra, ou alguma outra cidade bucólica nos arredores de São Paulo, para cuidar novamente do alcoolismo despertado pelos sucessos e pelos fracassos de sua trajetória. Teria que cuidar da artrite, da dor nas costas, da esclerose, da surdez, da síndrome do pânico e de doenças ainda não conhecidas hoje.

Com sorte poderia ter ao menos algum reconhecimento como escritor, o que não é algo tão fácil de se definir, pois não envolve apenas o quão famoso se torna o escritor, ou quanto dinheiro ele ganha. Escritores brasileiros normalmente podem transitar anônimos em eventos não literários e aí estava algo sedutor para Miro, que tinha por definição própria que o reconhecimento pelo trabalho literário resumia-se basicamente a não ter que conviver com colegas de trabalho numa repartição e nem ter horários rígidos. As delícias de uma vida solitária e reclusa o fascinavam. Poderia conseguir um editor, e isso certamente corresponde a um tipo de reconhecimento. Poderia também ser seu próprio editor, e caçar algum outro talento até então completamente anônimo. Na falta de assunto para escrever boas histórias, poderia matar algum tempo criando um alter ego que lhe desse liberdade artística para trabalhos experimentais. Pensava até que seria interessante se esse alter ego fosse criado antes mesmo de começar a assinar os trabalhos com seu nome verdadeiro.

A verdadeira fama parecia algo pesado demais para ser carregado por aí. O ideal seria ter dinheiro e andar sem ser importunado nas ruas. Miro sabia que também não precisava de rios de dinheiro. Bastaria pagar suas contas sem perder o sono e de vez em quando achar uma nota de vinte reais esquecida no bolso da jaqueta.

Poderia associar-se a alguns vagabundos do centro para que nunca deixasse de ter sobre o que ou sobre QUEM escrever. Numa ocasião, Elvis o levou a um albergue, na região do Anhangabaú, para averiguar a situação dos andarilhos que pernoitavam ali. Acompanhou-o até a porta, levando consigo um maço de cigarros Eight, que lhe havia custado um real. Abriu o maço e logo uma roda de andarilhos que esperavam em fila pela hora da sopa formou-se ao seu redor. Pôde então, sem que precisasse abordar ninguém, começar a ouvir histórias de gente que tinha sido castigada de verdade pela vida. Colheu boas idéias, mas tentava não fazer anotações na frente do andarilho que estivesse falando, de modo que várias frases sensacionais foram perdidas. Teve, no entanto, a impressão de que alguns dos caras gostariam de ter seus relatos documentados. Homens rudes, alguns vindos de outros estados, experimentando a contragosto as ruas de São Paulo.

Enquanto isso Elvis, que teve acesso à parte interna do albergue, estava concluindo que o local analisado tinha boas condições e que dava a esses homens ajuda efetiva para que agüentassem as ruas durante o dia. Estava levando em consideração que as pessoas a quem era oferecido o serviço não tinham muita frescura, algumas até estavam adaptando-se às condições impostas pela vida. Uns passaram até mesmo a gostar da condição de homeless depois que disponibilizaram os albergues. Homens realmente rudes que precisavam só do banho e da sopa à noite, e do café preto de manhã. Olhando isso tudo de fora, devemos considerar também o fato de que Elvis, comedor de tabletes de caldo knorr, não era exatamente a pessoa indicada para uma análise do albergue. Em contraponto a isso, Miro verificava por ele mesmo que os usuários com quem conversou na fila demonstravam satisfação com o serviço que lhes era oferecido.

Grandes turmas de amigos andarilhos eram separadas nas filas, por causa dos que chegavam bêbados ou drogados em meio a companheiros que conseguiam não sucumbir à bebida, em troca de uma sopa e uma cama. Alguns homens reclamavam que haviam sido barrados por estarem embriagados, e queixavam-se a Miro, que para eles, por alguma razão, parecia alguém que pudesse fazer algo para sanar o problema.

Era o primeiro semestre de 2008. Miro pode ver que naquele albergue que ficava próximo à Câmara dos Vereadores, alguns homens tinham realmente alguma condição de ao menos alimentarem-se e dormirem limpos, o que lhes deixariam com certo vigor e energia na manhã seguinte, para ganharem então as ruas novamente, para vagarem até escurecer novamente, e então entrarem novamente em fila. No começo de 2010 a situação estava caótica, com fechamento de albergues, com milhares de vagas a menos.

Havia um sujeito vindo do Mato Grosso que dizia preferir dormir no Minhocão ou na Avenida Duque de Caxias do que voltar para seu Estado natal antes de tentar efetivamente realizar seu sonho de empresariar seu irmão cantor e trazê-lo para São Paulo. Fumou um cigarro Eight com Miro, enquanto contava que estava havia dois meses em São Paulo, e conhecia a dureza das ruas, mas elas ainda não o tinham tornado amargo e destruído. Tinha algo em torno de um metro e oitenta, era magro, cerca de 65 quilos, cabelos curtos, barba aparada, graças à gilete e ao sabão oferecidos no albergue. Tinha as feições de um homem simples do interior do Brasil. Naquele momento pareceu a Miro que aqueles homens, principalmente os que vinham de estados longínquos, viam nas ruas de São Paulo algumas coisas que para eles representavam infraestrutura, ainda que fosse só uma marquise, e que para os paulistanos passavam despercebidas, a menos que quisessem urinar ali quando passavam.

Poucos meses depois, esse homem foi vítima do fechamento dos albergues por parte do prefeito, ficando sem sua vaga em Agosto de 2009. Não tomava mais sopa no começo da noite, não dormia decentemente, perambulava envelhecido e extremamente amargurado, e não havia semana em que Miro não o encontrasse, quase sempre na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Em poucos meses o impacto em sua aparência e em seu temperamento foi brutal.

A fala articulada e segura de Miro pode ter feito o andarilho matogrossense pensar que Miro estava lhe fazendo promessas de que o futuro reservaria àquele homem um tipo de prosperidade que lhe permitiria, por exemplo, viver num apartamento com vista para o centro da cidade, e ali ficar contando às pessoas como ‘venceu na cidade grande’, lembrando de desventuras frias, solitárias e dolorosas, olhando de cima as ruas pelas quais precisou transitar em condições adversas. O fato é que então ele perdeu sua vaga no albergue, de modo que a correria para achar um meio de lançar o irmão no mercado de música tornou-se inviável. Sua missão de contribuir com a arte foi substituída pela necessidade de atender ao apelo de seu instinto pela sobrevivência. Durante a noite era preciso estar vivo e durante o dia era preciso tentar comer algo e adiar aquela loucura mais completa, como a dos indigentes bêbados que dormiam na rua, que ele conheceu na época em que não precisava dormir ao relento.

Nos albergues não entravam moradores de rua que estivessem drogados ou embriagados. Evidentemente um número grande de bêbados tentava dar seu jeito de ao menos filar cigarros de companheiros de rua que estivessem na fila. Os assistentes sociais referiam-se a eles como pessoas ‘em situação de rua’, para que se enfatizasse a suposição de que passavam apenas por uma crise temporária, que seria revertida caso essas pessoas fizessem por onde. O andarilho matogrossense não parecia ter medo de chegar ao estado terminal provocado pela mendicância em São Paulo. Alguma coisa simples e repentina também o salvaria, da mesma maneira que nosso protagonista se safaria das desgraças do acaso sem maiores transtornos. Miro seria salvo. Ainda que não fosse trabalhando como empresário do irmão cantor, o andarilho matogrossense também seria salvo. A única coisa simples e repentina que aconteceu foi o fechamento dos albergues do Centro. Ele via e reconhecia Miro nas ruas, e então Miro lhe parecia um profeta charlatão. Olhava-o como se tivesse sido traído ou enganado por ele, sendo que nada jamais lhe foi prometido.

Não houve momento algum em que Miro tivesse iludido o andarilho matogrossense com idéias incompatíveis à realidade de São Paulo, para um migrante solitário com uma missão inglória. Miro esteve na fila do albergue para ajudar Elvis a colher material para o tal trabalho de faculdade que Elvis encarregou-se de fazer para uma amiga em troca de dinheiro, Aproveitou que estava ali para ouvir histórias de aventuras e principalmente de desventuras. Conversou com mais de um desses homens ao mesmo tempo, numa rodinha. Com o matogrossense é que conversou sem que houvesse outros homens por perto.
- Hoje as coisas não são como eram antes, quando o artista levava sua gravação a um programador musical de rádio para que ele a tocasse ou não. Hoje os meios do artista tentar aparecer na mídia são outros – dizia Miro ao matogrossense.
- Ah, o artista... – dizia o matogrossense, que naquele momento tinha em sua mente a palavra ‘artista’ ecoando. Parecia dispersar-se quando ouvia essa palavra da boca de Miro, e olhava para algo abstrato e pensava em alguma coisa também abstrata e segundos depois começava a voltar lentamente para a conversa.

O andarilho matogrossense gostou dessa palavra no contexto em que foi colocada. Ela lhe parecia genérica, mas ao mesmo tempo imponente. Colocava suas pretensões num patamar superior ao que originalmente alvejava. Miro falou simples e falou pouco a ele sobre isso, e ainda assim sentiu-se pernóstico. Sentiu até mesmo algo para o qual, naquele momento, pensou ser compaixão.

Foi surpreendente para Miro o fato de esse homem ter abraçado um vago objetivo de vida, o de empresariar um cantor sabe-se lá de qual gênero musical, com uma tendência monstruosa para a decepção, e ao ver finalmente esse sonho destroçado pela ilusão da cidade grande, ver-se sem uma outra missão para cumprir. Estava sujo, cansado e envelhecido. A missão era permanecer vivo. Tinha sido corajoso sem saber, e agora vagava desiludido e amargurado. Tinha até perdido um pouco do sotaque de caipira.

Era triste constatar que a figura do velho vagabundo estava condenada. Por alguma razão esses homens preferem habitar as grandes cidades, onde são cruelmente surrados pela vida. Citadinos passivos, como vírus impotentes num grande organismo doente e moribundo. Eles têm algum poder para ajudar a debilitar mais e mais esse organismo, que por sua vez desenvolve uma falsa imunidade, uma vez que acolhe cada vez mais indigentes que repousam sobre o cimento.

E eis que numa ocasião em que descia pela Brigadeiro Luís Antônio, Miro viu o andarilho matogrossense tentando vender velhos utensílios QUEBRADOS a um sujeito que estava se desfazendo de uma casa e precisava esvaziá-la. 'FAMÍLIA MUDA E VENDE TUDO'. A única porta de acesso ao interior da casa era a entrada da garagem, que o dono deixava aberta com móveis à venda, além de um fogão e uma velha geladeira, daquelas estilosas, com linhas arredondadas e a porta pesada. Não havia nenhum aviso ali fixado dizendo que o sujeito comprava objetos usados para revender. Miro passava e queria esquivar-se do olhar calmo, triste e acusador do andarilho matogrossense, que estava ocupado tentando passar para frente um despertador grande e antigo, até estiloso, mas que não funcionava. Estava argumentando que a beleza da peça valia a compra e o gasto com o posterior conserto, e que estava tentando vendê-lo porque não tinha como recuperá-lo, por falta de dinheiro. Ele levava ainda uma sacola azul transparente com uma balança de chão de banheiro.

Na manhã seguinte, Miro comentou o episódio com Elvis, acrescentando o fato de que o andarilho matogrossense estava agora ainda mais envelhecido, cansado, sujo e barbudo. Elvis respondeu o comentário:
- Se esse cara tivesse voltado pro Mato Grosso, ou se de lá jamais tivesse saído, talvez nem estivesse vivo. Ele não era de Cuiabá. Era de uma região pouco ou nada urbanizada, e provavelmente ali ele poderia até ser morto por um jacaré, uma onça ou por algum humano armado. Aqui, de um jeito ou de outro, ele consegue ao menos manter-se existindo, deslocando-se pelas ruas. Ele vê milhares de caras como ele por aí. Ele os vê e os conhece desde o tempo em que o conhecemos e ele era limpo e tinha esperança. Nem lembramos o nome dele. É um anônimo deslumbrado. Ele talvez não se veja da forma como o vemos, porque o fato de ter se tornado um citadino já o coloca, ainda que somente para ele, como alguém que melhorou de vida em comparação ao bronco saído de uma região longínqua do interior do Brasil. Continua bronco e agora está bem mais endurecido pela vida, mas em sua terra devia deparar-se freqüentemente com animais perigosos, e se ele prefere deparar-se diariamente com milhões de humanos para os quais ele é mais repugnante que um camundongo do limbo, então merece essa condição em que vive nessa cidade doente, transitando como um fantasma fatigado. Chamam isso de ‘viver em sociedade’, a desumanidade do homem para com o homem. É assim por toda parte, mas na cidade grande é pior ainda. Se para um cara como ele, não saber disso é uma imbecilidade, para você é mais ainda. Esperava de você um discernimento mais astuto para lidar com esse tipo de coisa. Eu penso sinceramente que suas agonias são autoimpostas. Ele quer ‘viver em sociedade’, e para ele isso já é o bastante, mesmo que ele nem saiba o que isso significa, e mesmo com todas as decepções decorrentes. Ele não vai empresariar o irmão cantor, e nem vai contar pra você sobre o que passou na rua desde que o albergue fechou, a menos que seja para se lamentar sobre a maneira como você o deixou ao relento, sendo que você não fez isso. Esse sujeito é tão burro que acha que você poderia ter feito sabe-se lá o que por um sonho que era ingênuo e era só dele e do irmão. Você agora representa para esse infeliz toda a mítica do cara da cidade grande que engana o caipira inocente, como naqueles velhos filmes, de modo que as histórias vividas por ele sobre essa crosta de cimento paulista vão sendo deletadas de sua mente da mesma forma que você elimina da sua caixa de e-mails as propagandas de cosméticos rejuvenescedores. Ele não pode sequer conceber que exista alguém que possa transformá-lo em personagem literário, que faça sua existência ser algo mais do que uma agonia desesperançada. Ele é que é o injusto dessa história cretina, e a burrice desse caipira o isenta em seu julgamento íntimo e particular. O abismo que o separa da sociedade foi imposto pela própria sociedade, e não vamos falar disso agora, a gente sempre fala da porra da sociedade. Você parece pensar de vez em quando que no fundo as pessoas são todas como você ou como o carteiro legal, mas são quase todas como o Pida e aquela velha mentecapta do andar debaixo. Lamentavelmente vocês dois são apenas gloriosas exceções. Agora certamente aquele andarilho matogrossense está lá deitado indolentemente na limbose, e merece isso. Se estiver de pé, está fazendo mais alguma pataquada. Que coma a perna necrosada de um nóia moreno caso tenha fome. Caipira mal agradecido do caralho! Nenhuma das vantagens do anonimato é aproveitada por ele, e todas as desvantagens brutais de viver exposto vão corroê-lo enquanto estiver pelas redondezas. Ele contribui para a degradação contínua da espécie humana. É lamentável que esse tipo abominável de humano considere-se capaz de estipular o que é certo ou errado, moral ou imoral, no que se refere à postura de qualquer outro. Portanto seja cruel e implacável na sua literatura, sempre que isso for necessário. As histórias e as personagens estão prontas nas ruas. A sua habilidade com as palavras tem que ser usada não para fazer esse jornalismo burro, frouxo e corrupto feito no Brasil. Você tem que ser o timoneiro de uma geração literária, e já sei até que você vai dizer que não existe uma geração literária no Brasil com gente com menos de 40 anos, ou com menos de 50, mas isso é apenas mais um motivo para você chamar para si a responsabilidade de tentar desburocratizar a cabeça das pessoas. Eu sei que essas suas atividades paralelas à literatura, como revisão de textos e essas ajudas que você dá a universitários idiotas, que não sabem colocar pontuação correta numa frase, atividades essas em que também é necessário saber escrever, os chamados ‘suportes paraliterários’, é que geram o dinheiro pra comprar comida e pagar a conta da Light, mas é preciso investir tempo agora para que sejam escritas por outro humano as palavras mais importantes, que são aquelas que estarão para sempre na sua lápide. Alguém que tenha aprendido algo com sua gloriosa existência. Seus livros têm que ser publicados, e a princípio pouco importa se vão estar nas prateleiras das livrarias freqüentadas por gordos usando boinas, que pagam caro por títulos que são encontrados em edições antigas e charmosas, nesses sebos empoeirados do Centro, por preços bem mais baixos. Esses sujeitos não vão comprar seu livro. São bundas moles. Compram best-sellers. Seus livros, a princípio, apenas precisam ser impressos para que existam fisicamente, nem que você os venda depois pela internet, ou os distribua da maneira que for conveniente. O reconhecimento pode vir, mas provavelmente quando você for um velho homem das letras. E não adianta ficar reclamando que tudo é uma bosta, e que as pessoas são um lixo e que a sociedade faliu. Pra você isso pode até ser uma dádiva. É de onde você vai tirar sua matéria prima. Você chama isso de ‘sumo’. Só aqui no centro há sumo pra escrever vários livros, sem que haja repetição do enredo. O mais difícil até agora você já fez por você mesmo, pela sua vida, que era resistir duramente às falsas seguranças a facilidades que o sistema oferece. Esse monte de merda que são os empregos comuns, que sugam o rebanho humano até seu tutano. Essas vidas comuns, em que a individualidade não vale nada. Você nunca se entregou a essa merda toda. Você se manteve fiel às suas convicções, ainda que tenha passado por vários momentos de confusão, o que é perfeitamente normal quando se trata de alguém em meio à guerrilha. Quem não tem uma visão para a própria vida, estará invariavelmente trabalhando para visão de outra pessoa.
- Quero ser bem sucedido comercialmente em um só livro, vender os direitos para o cinema, viver dos créditos dessa obra para sempre, recluso e escrevendo só quando tiver vontade, naqueles momentos em que precisarei não estar bebendo por motivo de saúde. Estarei um pouco amargurado, porque terei grana pra comprar as bebidas que quiser, e teria que manter o controle. Mas pensando bem, se eu conseguisse algum sucesso com a primeira obra, teria muita infraestrutura para escrever outros livros. Infraestrutura nesse caso significa tempo ocioso e um computador legal- respondeu Miro
- Os escritores alcoólatras eram figuras tristes, cada um a seu modo. Aquela infindável lista, Hemingway, Fitzgerald, Kerouac... O velho Bukowski talvez tenha sofrido mais ao longo da vida, mas entre esses caras citados, foi o que viveu mais tempo, e conseguiu saborear algum reconhecimento, podendo trocar as bebidas ordinárias por outras mais finas, numa casa confortável, e ficando vários quilos mais gordo, morrendo não exatamente por causa do álcool e sem ter cometido suicídio, além de beber como gente grande PRINCIPALMENTE quando escrevia. O Fitzgerald dizia: ‘Primeiro você pega uma bebida, depois a bebida pega uma bebida e finalmente a bebida pega você’. Fitz era muito irresponsável em vários setores da vida, mas na hora de escrever era realmente cuidadoso. Hemingway escrevia de pé, e já ouvi dizer que não escrevia bebendo. Acho que li numa biografia dele – disse Elvis.

Leia o sexto capítulo deste conto na edição de amanhã.

• Escritor

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