quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Tinhoso – IV

* Por Fernando Barreto

Capítulo 4 – Crop Circles are not accident

- MIRO,VOCÊ VIVE DO QUÊ? COMO VOCÊ SE SUSTENTA?– perguntava semanalmente no elevador, em voz alta, o garoto cabeludo de 11 anos que morava no quarto andar e tinha camisetas de bandas de rock, todas bastante puídas, furadas e manchadas de molho shoyo. Miro via a si mesmo naquele moleque, assim como este via a si próprio no futuro quando encontrava Miro no prédio.

Era curioso para Miro o fato de que as bandas das quais o garoto usava camisetas não eram exatamente os clichês mais descarados, como Metallica e Iron Maiden, apesar de também se tratarem de bandas famosas do Hard Rock e do Metal. Entre alguns equívocos e bandas legais, ele usava camisetas do Wasp, Van Halen, Thin Lizzy, Jane’s Addiction, Dio. Passou pela cabeça de Miro que o garoto provavelmente tivesse ganhado essas camisetas de alguém que não fosse seu pai ou sua mãe, pois ele nunca tinha visto uma guitarra de perto, até que Miro certa vez mostrou-lhe sua guitarra quando a levou para o apartamento.

A razão pela qual o garoto fazia regularmente a mesma pergunta sobre o sustento de Miro não tinha nada a ver com algum desejo de encurralar ou constranger nosso protagonista. Era apenas uma ingênua curiosidade a respeito de um estilo de vida que não lhe era familiar, mas que lhe parecia digna de conhecimento. O garoto tinha a visão da ponta do iceberg que era a vida de Miro, e não lhe fazia sentido algum as possibilidades que eventualmente vinham-lhe à cabeça para solucionar o mistério que era a parte submersa do iceberg. Observava com clareza que Miro não tinha horários rígidos para sair ou para chegar em casa, o que destoava da realidade cotidiana do resto dos moradores do condomínio. E Miro também tinha o cabelo comprido, que parecia o de Greg Lake, vocalista e baixista do Emerson, Lake & Palmer, na época do lançamento do álbum Trilogy.

O garoto assistia a sociedade aniquilando os indivíduos à sua volta e isso dava um nó em sua cabeça, porque sabia muito bem que seu tóba também estava na reta. Via em Miro a figura de um cara um pouco mais safo que os outros no que diz respeito a preservar um pouco de sua individualidade, vendendo um pouco mais caro suas derrotas. Quer dizer, Miro já tinha passado dos 30 anos e pelo menos o cabelo comprido ainda estava sendo preservado, a despeito das pressões que sofreu quando era mais jovem. E Miro era um cara real, não um rock star inacessível que anda de carro conversível em Los Angeles com a tranqüilidade de quem recebe cheques de direitos autorais com regularidade e pode aparecer nas capas dos discos sorrindo e tirando uma com a cara dos fãs do terceiro mundo. O que há de contraditório nisso é o fato de que nesse e em outros sentidos, Miro se considerava um pouco mais vítima que esses indivíduos aniquilados, por julgar que o fato de eles já não possuírem discernimento, não possuírem sequer uma alma, fazia com que não tivessem tanto a perder com a exposição de suas débeis existências à não menos débil vizinhança.

Havia um padrão de comportamento a ser seguido por aquelas pessoas, dentro das limitações financeiras e sociais. Aqueles humanos seguiam cegamente esse padrão, não por escolha consciente, mas simplesmente por não enxergarem ou conceberem um outro caminho. Eram movidos pela inércia. Formava-se então uma grande patrulha comportamental que invadia grosseiramente a vida das pessoas mais reservadas, que sentiam asco de tudo aquilo.

A pergunta que na cabeça de Miro não queria calar era como aquele garoto havia conseguido deixar crescer uma cabeleira que ia até abaixo dos ombros sem que muito antes disso fosse punido com o corte da mesma e até com castigos físicos, uma vez que seus pais eram broncos o bastante para ir até mesmo além disso, no que diz respeito à violência e à repressão.

A resposta a essa dúvida veio por intermédio de ninguém menos que Elvis, que mais tarde começou a transar com Gladis, uma jovem senhora com idade de 42 anos, que era tia do garoto, irmã de sua mãe, e que vinha visitá-los com alguma regularidade. Miro já a tinha visto inúmeras vezes, mas não fez a associação, mesmo com o fato de Gladis sempre surgir no prédio vestindo camisetas do Black Sabbath, do Depeche Mode e dos Ramones e dirigir-se sempre ao quarto andar. Sendo assim, não havia problemas em recebê-la quando Elvis estivesse junto.

Gladis tinha pavor dos hábitos alimentares de Elvis, de modo que Miro aproveitava-se disso para manter sua casa sempre abastecida de comida, ainda que fossem apenas latas de ervilha e torradas. Ficava comentando com Gladis que Elvis morreria muito cedo caso não deixasse de lado a voracidade com que devorava tabletes e mais tabletes de caldo knorr. Elvis também fumava um maço e meio de Derby por dia e tinha alguns lampejos de um machista chauvinista quando referia-se à forma como as relações com as mulheres deveriam ser conduzidas. ‘São cabeças de gado, e como tal devem ser administradas’.

Elvis parecia realmente convicto com relação à sua teoria sobre mulheres, mas a maneira como agia na prática parecia pouco fiel a ela se considerarmos o fato de que seu humor e sua qualidade de vida dependiam da ausência de interferências femininas, que para ele eram negativas, como recriminação a maus hábitos alimentares, bebedeiras e falta de fonte fixa de renda. Ele precisava de sexo e abria mão de certas conveniências que a liberdade proporcionava. Gladis já começava a tentar domesticá-lo.

Leia o quinto capítulo deste conto na edição de amanhã.

 
• Escritor

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