segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Tinhoso – II

* Por Fernando Barreto

Capítulo 2 - The elderlies are like children

Uma velha senhora japonesa fazia com que Miro não tivesse pena de quase ninguém no prédio em que vivia. Fora do prédio também. Dona Masumi vivia no apartamento 708, exatamente embaixo do apartamento de Miro, que era o 808, de onde se podia sentir diariamente o cheiro de sua comida, à base de arroz e legumes, entrando pela sua janela pouco antes do meio dia.

Tudo a irritava, mas ao mesmo tempo tinha muita carência de convívio humano. Miro também era um sujeito irritadiço, mas evitava ao máximo o contato com os vizinhos, que muitas vezes era a causa do mau humor. O prédio em que vivia tinha dez apartamentos por andar, e era difícil sair de casa sem que houvesse alguém no corredor. Estimava-se que o prédio tivesse 600 moradores no total.

A velha Masumi desdobrava-se para ter alguma atenção por parte das pessoas. Com problemas respiratórios crônicos e vivendo na fumaça do centro da cidade, falava com dificuldade, mas incessantemente, cuspindo fogo e pestilência, houvesse alguém por perto ou não. Quase sempre havia gente por ali, por causa da grande população do edifício e do tamanho dos apartamentos, muito pequenos, o que fazia com que as pessoas deixassem suas portas abertas, principalmente as que tinham crianças. No sétimo andar viviam cerca de 30 pessoas. Só havia quitinetes naquele prédio, e o fato de a velha morar sozinha fazia com que a média de habitantes nos outros cubículos fosse maior do que três em cada unidade. Havia famílias inteiras entuxadas nas quitinetes. Pai, mãe, duas ou três crianças, sogra, todos dividindo 40 metros quadrados e um só banheiro.

As crianças mamelucas, brancas, negras, bolivianas e de outras etnias, resultados de miscigenações bem mais complexas, brincavam pelos corredores, derrubando por conta própria a proibição dessa prática. Jogavam bola, gritavam, e vez ou outra brigavam ou machucavam-se ao cair nas escadas. Havia muita energia infantil e juvenil concentrada naqueles cubículos, e potencializada por uma alimentação rica em açúcar e carboidratos de baixa qualidade. Os pais não permitiam de maneira nenhuma que essas crianças saíssem do prédio, pois o contato com a Cracolândia seria imediato.

Aqueles apartamentos comportariam bem apenas um adulto solteiro que não tivesse tanto apego ao padrão burguês de residência. As mães faziam a comida com as portas abertas, comunicavam-se em voz alta com outros adultos que passavam pelo corredor e o forró com letras grosseiras e machistas comia solto.

Miro certa vez ajudou Masumi a colocar umas sacolas de compras para dentro do apartamento dela, quando ainda não a conhecia bem porque era novo no prédio. Desde então tornou-se quase um refém das crises de mau humor da velha japonesa. Uma lamentável confusão por parte dela perturbava Miro, confusão essa muito comum entre as pessoas idosas, sozinhas, carentes, desesperadas, enlouquecidas e sem qualquer perspectiva. Ela distorcia completamente o que deve se entender por respeito aos mais velhos. Por imposição da velha, Miro tornou-se uma espécie de confidente sem que jamais se declarasse disposto a isso. Ouvia passivamente suas lamentações sobre como as vizinhas não sabem viver suas vidas e sobre como o povo brasileiro é grosseiro e sem classe. Enquanto ela falava, ele acumulava rancor e tentava desvencilhar-se. E ela o intimava para saber de sua vida pessoal.
- Miro, qual é seu nome de verdade? – a velha perguntava a ele regularmente.
- É Miro mesmo – era o que sempre respondia o nosso protagonista Miro.
- Miro não é nome, rapaz!! Miro é apelido!!! Qual é seu nome? E esse cabelo? Tem que cortar pra virar um homenzinho. Quantos anos você tem? Você trabalha em quê? – rebatia a velha.

Elvis ficava indignado com a petulância da velha Masumi, e não cansava de repetir a Miro sermões como este, semanalmente:
- Você quer dar uma de compreensivo e fica se torturando. Tem que dar logo um apavoro nessa velha filha da puta ao invés de ficar se desdobrando em gentilezas. Comigo ela nunca mexe. Eu queria muito que mexesse. Passo por ali e olho pra ela e fico esperando que ela se dirija a mim, e nada. Tem muitos velhos que são bem piores do que essas crianças venenosas de hoje em dia. Não é preciso sequer sair do prédio pra constatar isso. Alguma vez você teve algum problema com as crianças daqui? Elas geralmente são ruins apenas entre elas mesmas. Essas crianças ficam espiando com muita curiosidade o interior do seu apartamento a cada vez que um de nós vai colocar o lixo pra fora. São como uma espécie de cobrinhas diabólicas, que se contentam quando algum adulto joga uns camundongos dentro de suas estufas, e depois disso passam instintivamente a agir de maneira política com estes humanos adultos, para que nunca faltem ratinhos por perto. Elas podem causar certos transtornos, mas geralmente daquele tipo que o adulto minimamente coerente sabe como resolver sem burocracia. Claro, devemos nos lembrar que os transtornos são causados principalmente aos pais, que não podem ser considerados coerentes, uma vez que, caso quisessem viver sem problemas, não teriam filhos. A vantagem de lidar com crianças é o fato de que a elas qualquer coisa pode ser dita. Qualquer coisa. Tudo. Elas só não gostam de ser enganadas deliberadamente, o que convenhamos, é justo. No entanto, não me parece ser nada inteligente tentar criar filhos aqui no Centro. Mas o fato é que há velhos que são piores do que essas crianças. Eu já me peguei tramando a morte dessa velha desgraçada uma série de vezes, só pela maneira como eu a vejo agir com os vizinhos. Muitos deles merecem mesmo ter esse lixo humano como encosto, mas ela não tem o discernimento pra escolher quem vai importunar. Você é um sujeito que não merece passar por isso e eu cansei de ouvir daqui de cima ela perguntando seu nome. É uma pessoa tão rasteira que deve ficar com um nó no cérebro a cada vez que se questiona se seu nome é Claudiomiro, ou Valdomiro, ou Altamiro. Usa a velhice como subterfúgio para agir toscamente. Ela só não sobe aqui pra te aloprar porque sabe que se fizer isso eu vou fritá-la. Talvez também não tenha nem condições físicas de subir um lance de escada. Isso porque nós não estamos falando também daquela bicha velha que mora no 804, que fica te vigiando porque gosta de você ou no mínimo tem curiosidade sobre o que você é e faz. Aquela bicha que parece o vocalista do Pet Shop Boys!!! Você é vigiado por uma bicha velha, caralho!!! E atormentado por uma japonesa velha!!! É preciso se rebelar antes que a coisa toda saia completamente do controle! Essas patrulhas comportamentais precisam ser combatidas a qualquer custo.

Miro tentava defender-se da acusação de ser bonzinho demais, imagem que Elvis frequentemente lhe atribuía, alegando o seguinte:
- Eu geralmente a deixo no lugar que ela merece, que é longe de mim. Eu sinto como se cada segundo que eu passo longe dela fosse a minha vingança. Eu não sei se é uma pena ou uma dádiva o fato de que quando estou longe dela nunca lembro de sua existência, o que faz com que isso seja um ponto para ela, já que não desfruto desse benefício como poderia. Caso eu lembrasse, poderia ser algo que me livraria de uma eventual crise de mau humor. Lembro de sua existência tosca só quando estou descendo a escada e vou passar pelo sétimo andar e sei que serei abordado. O que eu sinto por ela não tem um nome. Não é só ódio, nem só desprezo. É uma mistura dessas coisas com outros sentimentos que desenvolvemos nas nossas relações humanas nessa cidade doente e claustrofóbica. Tenho muitos sentimentos complexos, que ainda não têm nome, e que de um modo geral são negativos. Tento manter minha cabeça e ordem, me abstrair disso tudo, mas não é tão fácil. É nessas horas que vemos como a linguagem humana é limitada. Tenho que explicar o que sinto dizendo que é uma grande mistura. Isso vai me matar mais cedo, vou entrar em parafuso. Mas quando isso acontecer, deixarei um dano grande em quem estiver por perto me aloprando.

Realmente era preciso ter uma certa índole para lidar com esse tipo de situação. Era como um investimento a longo prazo e sem garantias de retorno que precisa ser feito quase diariamente. Caso explodisse num único dia, as consequências imediatas e a médio e longo prazo poderiam ser piores. A velha poderia morrer de um choque emocional súbito, por sentir-se abandonada pela última pessoa que lhe dava algum tipo de atenção. Miro era dessa índole. É verdade que se a velha soubesse o que ele sente por ela, sua morte também poderia ser antecipada.

Aquela velha mulher vivia no Brasil há mais de 50 anos. Definitivamente nunca conseguiu se adaptar ao jeito brasileiro de viver nem tampouco aprendeu a se comportar diante das dificuldades tupiniquins. Portava-se sempre de maneira bisonha. O tipo de brasilidade com o qual Masumi teve que lidar depois que sua família se deteriorou era a oposição extrema aos valores que ela trouxe do Japão e ao modo como tentou criar sua filha e relacionar-se com o marido. A filha logo rebelou-se contra a rígida educação à qual foi submetida desde criança, e o marido adaptou-se à brasilidade rapidamente, naquilo que ela tem de pior, tornando-se um bom cachaceiro, mas sem deixar de trabalhar duro para o sustento de sua casa, com medo de que sua filha se tornasse uma rapariga como outras que conhecia em Cotia. A tentativa de conciliar família, trabalho, alcoolismo e putaria, coisas totalmente inconciliáveis, somada a uma saúde frágil, o levou à morte prematura. Tinha 52 anos quando um mal súbito o matou sem que jamais tivesse deitado no leito de um hospital e sem que jamais tivesse pego um resfriado sério.

A velha Masumi cozinhava enquanto ouvia a programação da TV aberta e praguejava horrores, sozinha, muitas vezes em japonês, e outras vezes numa mistura entre português e japonês. Delírios furiosos e incompreensíveis.

Numa época em que suas crises respiratórias estavam mais fortes e freqüentes por conta de um longo período sem chuvas em São Paulo, uma garota boliviana a ajudava nas tarefas diárias. Mais tarde essa garota ficou conhecida no prédio e nas redondezas como a Irmã Nóia. Morava na Rua Aurora com a mãe, que sofreu de Alzheimer por quase 10 anos. A morte de sua mãe e o envolvimento com o jovem Pida, que fez parte do Trio Calafrio (sobre o qual falaremos muito em breve), a levaram à derrocada.

Para aplacar a dor da perda da mãe e sua vida conturbada de imigrante jovem, pobre e sozinha no Centro, afundou-se no consumo de crack, que era fornecido por Pida, numa época em que ela ainda conseguia trabalhar e ajudava Pida a manter sua vida de viciado. Irmã Nóia tinha problemas de relacionamento com a velha Masumi, que a tratava como a mais repugnante das ratazanas do esgoto do Centro, e esse fator somado à droga, a derrubaram rapidamente do patamar de jovem tímida e trabalhadora para as valas e calçadas imundas da Boca do Lixo. A ruína definitiva chegou mesmo quando Pida começou a espancá-la para roubar suas pedras quando viviam inadimplentes no quarto em que Irmã Nóia viveu com a mãe antes dela morrer.

Pida passou um período de um ano na reabilitação, depois de ser preso numa batida policial surpresa, típica dos períodos de eleições para o governo do estado. Ali pôde alimentar-se, exercitar-se com trabalhos braçais e estudar, alfabetizando-se. Conseguiu se recompor fisicamente de uma maneira razoável. Recuperou alguns quilos e se desintoxicou do crack, mas teve sérias crises de abstinência. Ensinou os companheiros de reclusão a se rebelarem contra as ordens dos funcionários da instituição e saiu dali quando foi dado como irrecuperável e acima de tudo como má influência, mesmo tendo ficado afastado do crack no período em que esteve internado. Quando voltou para as ruas do Centro, soube que Quimba e Beiça, os outros integrantes do chamado Trio Calafrio, haviam sucumbido a overdoses fulminantes de pedra.

Era então o único componente vivo do Trio Calafrio, e sendo assim, seguiu em carreira solo determinado a continuar com sua missão na Terra, que era azedar a vida de quem estivesse por perto. Na época da volta de Pida às ruas, a Cracolândia havia mudado apenas em alguns poucos aspectos, ao contrário do que diziam as autoridades e sobre o que o próprio Pida ouvia quando estava recluso. Ele ainda conhecia bastante gente ali, mas sobretudo era conhecido e reconhecido por muita gente. Moradores, policiais e comerciantes da região geralmente o conheciam ou tinham presenciado suas ações noturnas.

Aqui se faz necessário explicar que a velha Masumi tinha em Pida o mais vil e tenebroso encosto que se pode querer conceber. Do ponto de vista de Miro e Elvis, ela tinha exatamente o que merecia, não só pelo rancor e ódio da velha que acumulavam diariamente, mas pelo mito do Trio Calafrio, que poderia servir de fonte de inspiração para livros que viessem a escrever sobre o Centro, e pelo fato de Pida ter sido sempre o tipo mais alucinado que se pode imaginar, mesmo para os padrões de Elvis, e mesmo se fosse comparado a seus companheiros do Trio. Na Cracolândia todos apostavam que Pida seria o primeiro dos três a morrer. Falemos então mais um pouco sobre a velha Masumi e sobre o Trio Calafrio.

Masumi teve uma família que se encaixava nos moldes que ela considerava padrão. Viveu em Cotia com o marido e uma filha, plantando tomates que ele vendia na feira. O cara morreu de desgosto com a brasilidade. Sua filha que cresceu numa época em que os japoneses eram alvos de brincadeiras maldosas na escola, quando não existiam esses grupos mais rebeldes de orientais que andam sempre juntos, ouvindo música pop ocidental de baixa qualidade, fumando cigarros e sendo hostis. Em casa era submetida à rígida tradição nipônica. Estudava em uma escola particular, o que não lhe poupava do que havia de pior na brasilidade. Era boa aluna e sua maneira de se rebelar foi mandar a família às favas quando já morava em São Paulo para fazer faculdade e tinha um emprego de bancária. Quando o patriarca morreu, a moça instalou a velha Masumi na quitinete do Centro, enquanto vivia na zona oeste da cidade. A mágoa era mútua entre as duas.

A filha de Masumi prestava mensalmente alguma assistência financeira para que a velha pagasse o condomínio, aluguel, luz e comida. Seu apartamento era voltado para a Rua Aurora, e antes da chegada de Miro ao condomínio, Dona Masumi teve problemas com os três moleques, um deles com 11 anos na época, e os outros dois com 12 cada um. O mais jovem era Pida, e os outros dois eram Beiça e Quimba. Quando ficavam totalmente transtornados depois de horas fumando crack, faziam muita arruaça nas madrugadas da Boca do Lixo, chutando latas, roubando, agredindo transeuntes e mendigos e vez ou outra sendo detidos pelos tiras para em seguida serem soltos. Amanheciam deitados indolentemente nas calçadas da Cracolândia, descalços, com os pés muito sujos e rachados, enrolados em cobertores que fediam a mijo e merda. Dormiam durante o tempo suficiente para que pudessem levantar novamente, ou o tempo que podiam permanecer deitados antes de serem acordados a pauladas pelos comerciantes da região, caso viessem a adormecer na frente de algum bar, padaria ou oficina mecânica, e seguiam determinados na luta diária em função das rochas. Isso tudo numa época em que o prefeito da cidade anunciava o fim da Cracolândia.

A velha poderia sentir-se imune às ações do trio, salva pela segura distância de sete andares que a separava do térreo, mas, ao contrário, sentia-se fortemente envolvida por aquele verdadeiro pandemônio, como se aqueles três moleques fossem apenas as cerejas no grande bolo de merda que era composto pelo que Miro e Elvis chamavam de ‘grande massa anônima ribeirinha’ do Centro.

Miro e Elvis eram realmente intolerantes com a parcela mais humilde da população que, diga-se de passagem, corresponde à maior parte da população brasileira. Isso sempre fez com que fossem taxados de arrogantes ou até mesmo nazistas por alguns vizinhos. Não faziam ataques diretos aos vizinhos, pelo contrário, procuravam evitá-los, na medida do possível. Isso já era o bastante para que aos poucos fossem vistos como burgueses preconceituosos. Procuravam manter-se alheios a comentários da vizinhança, que de fato tinha por hábito investigar o que cada morador fazia dentro de seus apartamentos, e comentavam sobre ter mais ou menos dinheiro e sobre preferências sexuais. Até mesmo o Jazz que de vez em quando era ouvido por Miro ou Elvis e que vazava para o corredor do prédio era visto como coisa de gente metida e grã-fina. Por mais despojados que fossem, os dois não deixavam de ser vistos dessa forma. A vizinhança naquela área gostava de contato humano efetivo e os vizinhos sentiam uma estranha atração por aqueles dois sujeitos.

Elvis tinha muito pavor do rótulo de burguês que alguns desses vizinhos lhe atribuíam. Parecia-lhe contraditório. Não conseguia se esquecer da tarde em que estava na Rua Pamplona e viu um policial destruir uma barraquinha de um camelô que vendia óculos escuros. Elvis descia a rua num sábado quando ouviu o barulho da porrada do cassetete do policial na barraquinha e o grito do dono da mercadoria, e viu os óculos espalhados na calçada e desceu mais um quarteirão, onde parou já em frente ao supermercado e fumou um cigarro antes de entrar. Elvis tinha passado por esse camelô segundos antes da viatura chegar. Estava indo até aquele supermercado porque estava na região da Avenida Paulista naquela tarde e lembrou que ali era vendida uma marca de uísque envelhecido oito anos por um preço razoável. Estava com saudade de beber uísque. Estava se preparando para cultivar um hábito que ele considerava ser de fato burguês. Quase nunca o fazia. Na frente do supermercado ele fumava e olhava a ação dos policiais cinqüenta metros acima, que estava mobilizando todos os outros ambulantes da rua, que eram vários e havia inclusive um casal que vendia flores bem ao lado de onde ele estava parado fumando. O casal estava aflito. Recolheram alguns vasos e ficaram esperando que os homens fossem embora. Eles entraram na viatura, desceram cerca de cem metros e pararam na frente de Elvis. Abordaram-no, o revistaram e disseram que sabiam que ele era ambulante. Perguntaram pela mercadoria. O casal que vendia flores estava se cagando de medo, pois tinham uma grande quantidade de vasos que estavam cobertos por um plástico cor de laranja. Elvis nunca havia se sentido tão bem por não ter maconha no bolso. O que significava afinal ter cara de vendedor ambulante? Por que aqueles guardas ‘sabiam’ que ele era ambulante? Por que naquela região ele era visto como marginal e no Centro era visto como playboy? Isso tinha que acontecer justamente no dia em que resolveu que tomaria uísque? Quando finalmente terminaram o enquadro em Elvis, os tiras foram embora sem levantar o plástico cor de laranja que cobria os vasos do casal, que estava a poucos metros dali.

Na região do centro em que Elvis estava dividindo apartamento com Miro, Pida representava para o morador mediano dali o oposto do que os dois pareciam representar, por causa do mistério que envolvia suas origens e seus objetivos na região central da cidade, que eram obscuros para os vizinhos, por causa da antisociabilidade da dupla.

O barulho noturno de Pida e seus comparsas acordava a velha Masumi nas melhores partes de seu conturbado sono, quando seus problemas respiratórios acalmavam um pouco e deixavam-na dormir. Nessas noites Masumi se lembrava de sua infância no Japão, numa família que prezava por valores tradicionais. Quando refletia sobre como havia parado ali, sem família, sem referencial e sem qualquer perspectiva, sua cabeça dava um nó e ela virava uma metralhadora verborrágica fora de controle.

Miro só usava o elevador do prédio para subir até seu apartamento, nunca para descer ao térreo para ganhar as ruas. Descer pela escada era sempre mais rápido, a menos que fosse enquadrado pela velha ao fim do primeiro lance de escada, quando chegava ao sétimo andar. E nessas ocasiões era duramente intimado por Masumi, que conhecia vagamente suas convicções duras relativas à maioria das pessoas, apenas porque ouvia suas conversas com amigos do andar de baixo e tinha certo receio de ouvir daquele sujeito alguma grosseria de verdade, mas por alguma razão não se acanhava para abordá-lo. O fato é que a velha pegava relativamente leve com ele. Com vizinhas intimidadas, com crianças ou com vizinhos mamelucos, dos quais ela realmente não gostava, agia algumas vezes de maneira desesperadamente grosseira. As crises mais fortes de falta de ar faziam com que sua voz não saísse, e nessas horas quanto mais esforço fizesse para fazer seus apelos, mais descontrolada ela ficava, gesticulando alucinada. Miro era um dos poucos vizinhos aos quais a velha chamava pelo nome.

O corredor do sétimo andar era uma balbúrdia tão grande durante o dia, que Miro sentia-se nobre quando conseguia desvencilhar-se como se o papo não fosse com ele, em meio às crianças correndo, cachorros latindo e vizinhas falando alto com as outras, às vezes uma em cada ponta do corredor, desdobrando-se em tarefas domésticas simultâneas. Palavrões pontuavam todas as frases ditas aos berros pelos homens. Aquele prédio era um verdadeiro pombal e a velha era a cereja no bolo da desgraça. Miro não se importava com a bagunça, apenas não podia e não queria ser abordado. Só quem o intimava naquele corredor era Masumi.

Das segundas às quintas, as noites nos corredores do prédio eram de uma tristeza russa, com a grande massa humana em repouso. As samambaias de plástico, penduradas no alto da parede entre as duas portas dos elevadores acentuavam o aspecto de morte e desolação estampadas nos velhos azulejos brancos, amarelados e tristes. Nos andares mais baixos era possível ouvir nitidamente o movimento da Cracolândia, com adolescentes gritando obscenidades. A receita para quem pensasse em suicídio e ainda não tivesse coragem para praticá-lo era esperar por um dia em que faltasse luz naquela região. O passo seguinte seria ler algumas páginas de Dostoiévski dentro de um daqueles apartamentos à luz de velas fazendo breves intervalos para pensar no futuro.

Nas noites mais solitárias e tristes, Miro gostava de se confortar pensando nas corujas que viviam dentro de árvores ocas em bosques úmidos e silenciosos onde é sempre noite e onde as preocupações cotidianas resumem-se à busca de comida sem que se morra assassinado por algum predador antes de voltar ao abrigo. Essas noites não eram incomuns, até vinham com uma certa regularidade. Miro sabia que esses lapsos de melancolia eram inevitáveis. Ficava pensando que provavelmente Elvis estaria se divertindo enquanto se ausentava do apartamento. Sabia que era impossível para ele e para qualquer outro sustentar um estado de euforia permanente. A felicidade em pessoas inteligentes é das coisas mais raras que se pode encontrar, e até aquele ponto de sua vida, Miro podia dar-se por satisfeito com o que tinha vivido.

Dona Masumi abordava pessoas que saíam de casa atrasadas para suas empreitadas diárias para pedir favores, e nessas ocasiões geralmente era prontamente atendida por quem tenha sido solicitado. Em outras ocasiões essas interrupções eram feitas apenas para comentar algo, como sobre o quão sujo estava o ar naquela manhã, ou como sua falta de ar estava lhe causando transtornos, ou para insultar o infeliz que fosse abordado. Quase todas as vezes em que os moradores do sétimo andar eram interrompidos por algo que não fosse urgente, ela era deixada de lado e havia discussões, com a velha reivindicando atenção por parte das pessoas. A cada recusa, a velha munia-se de uma energia que nunca ninguém saberá de onde vinha, para praguejar, apesar de sua falta de ar crônica.

A vida desses vizinhos se tornava um inferno, porque depois de um longo dia de trabalho, apanhando de verdade da vida, eles voltavam para casa e encontravam Masumi com a porta de seu apartamento aberta, e ela sempre lembrava do episódio da manhã, caso tenha sido largada ao descaso, de modo que essas pessoas subiam pelo elevador pensando somente em entrar em suas pequenas moradas e tirar os sapatos, e então deparavam-se com aquela velha senhora japonesa, amargurada e sozinha na Boca do Lixo e eram duramente repreendidas. Somente lembravam que a encontrariam no último segundo, quando o elevador desacelerava para parar no sétimo andar. Era o momento em que os calos quase paravam de doer por causa da perspectiva de calçarem seus chinelos para esperarem pelo jantar. Mas antes de sentirem essa satisfação, tinham que passar por Dona Masumi, que passava seus dias claustrofóbicos dentro de seu cubículo fazendo uma zeladoria no corredor.

Era uma velha humana desprezível, pior do que qualquer assombração, e ainda assim sentia desprezo por nordestinos, negros e mestiços, que eram a maioria ali. O que havia de mais repugnante era o fato de que Masumi não falava abertamente sobre esse desprezo que sentia. O que mais a aborrecia, por pura inveja, era a energia sexual dos vizinhos, que transavam alucinadamente, o que era perceptível pelo fato de as paredes entre os apartamentos serem finas, e faziam filhos aos montes, e a velha quase podia se lembrar da noite em que cada uma daquelas crianças do seu andar tinha sido gerada. Garotas jovens e magras engravidavam de maridos 20 anos mais velhos ou mais, como se suas missões na vida se resumissem ao ‘milagre’ da procriação, e a cada transa regada a cachaça e forró que Masumi ouvia, ela podia pensar que até essa nova criança nascer talvez ela esteja morta. E imaginava sobretudo que aquele pandemônio todo ia continuar depois que ela morresse.

Ela morreria e o forró continuaria tocando e a cachaça ia ser bebida como sempre e as jovens semi-analfabetas engravidariam e Elvis roubaria leite e jornal e os nóias fumariam pedra nas ruas ao redor do prédio. Masumi sentia-se amargurada pelo desprestígio que lhe era despejado na cabeça, em troca de sua arrogância doente. Na melhor das hipóteses, caso fosse lembrada pelos vizinhos depois de sua morte, seria somente como uma velha larva rancorosa.

Masumi sabia que Miro não era a pessoa mais sociável naquele prédio, nem a mais satisfeita com os vizinhos que tinha. Isso a intrigava demais, porque quando o ouvia falar com Elvis, percebia que suas queixas eram bem fundamentadas. Com ela jamais havia o mesmo tipo de diálogo aberto. O desprezo pela vizinhança que ele expressava com palavras não ditas a encorajava em suas abordagens. Se por um lado sabia que não devia chateá-lo a fim de não ser descrita por ele com palavras duras para seus amigos, por outro não conseguia evitar as entrevistas as quais o submetia, talvez para que pudesse ter certeza de que corria mesmo o risco de ser taxada de velha miserável. Havia ainda o fato de ele sentir-se incomodado e não dar a ela em hipótese alguma o que ela queria, que eram respostas efetivas sobre sua vida pessoal. Mesmo sendo incomodado pela velha, ele sempre conseguia ir embora sem que ela ouvisse as respostas que queria. Para ele os intervalos entre as abordagens da velha pareciam curtos, mas para ela pareciam durar uma eternidade.

Miro tinha medo de que no futuro, as limitações físicas da velhice fizessem dele alguém dependente de outro humano para ajudá-lo nas tarefas mais básicas do cotidiano. O que não sabia exatamente era se a velha senhora japonesa sentia necessidade de convívio apenas por causa dessas limitações e dificuldades físicas, ou se ainda havia ali alguma esperança na espécie humana, já tão degradada, especialmente naquela parte da cidade, e mais ainda em sua própria pessoa.

Tendo atrás de nós toda a história da humanidade, parecia estranho que alguém, por mais lunático que fosse, tivesse essa esperança. Seria mais ordinário se a constatação fosse de que ela sentia PRAZER com esse convívio humano? O entusiasmo que Miro tinha pela sensação de estar vivo se apagaria quando começasse a se sentir decrépito?

Leia o terceiro capítulo deste conto na edição de amanhã.


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