sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Nada acontece no meu coração

* Por Raul Longo

“Não sou obrigado a apresentá-lo...” – Celso Russomanno, candidato à Prefeito da capital do estado de São Paulo, referindo-se ao seu plano administrativo.

Na verdade, não é de hoje que nada acontece no meu coração a respeito da cidade de São Paulo. Já há umas duas décadas a poluição daquela capital me provocou um escarro em plena Ipiranga com São João, justo no pico do horário de rush. Ao contrário de Augusto dos Anjos, senti-me sem um único abismo para filosofar sobre a queda daquela secreção. Acuado por tantos pés céleres a atravessar a esquina, segui até à Avenida Consolação onde, enfim, encontrei um canteiro para me livrar do horrível gosto de fuligem.

Fui em frente considerando a impossibilidade de voltar a viver numa cidade onde a sucessão de representantes dos interesses capitalistas, por puro descaso e desleixo amontoam as pessoas em tão densa concentração,

Terceira ou segunda maior cidade do mundo, São Paulo é o mais acabado exemplo da ausência de humanismo do sistema político/econômico em vertiginosa evolução desde os anos 50, quando ali fui educado pela família e pelo Instituto de Educação Caetano de Campos.

A família me ensinava a ser cordial com os mais velhos e às mulheres, proceder civilizadamente com todas as pessoas independente de gênero ou faixa etária. Por isso planejei a caminhada da São João à Consolação, evitando cuspir nos pés dos apressados transeuntes das 18 horas da Av. Ipiranga.

Já o Caetano de Campos me ensinou outras coisas, entre elas a importância histórica de São Paulo desde quando os Bandeirantes planejavam incursões pelos interiores, reunidos no ponto de partida lá na antiga bica do Largo da Memória. Os objetivos das Bandeiras eram dos mais deploráveis: prear indígenas e descobrir riquezas minerais a serem espoliadas pelos colonizadores. Mas no século XIX, já com o nome de Largo do Piques, atraindo moradores pela água da nascente, o local testemunhou os moradores do então pequeno vilarejo a planejar o cotidiano e viajantes a projetar o prosseguimento pelas longas trilhas ao sul, ao norte ou a oeste do país.

Ainda no começo daquele mesmo século se criou a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco que junto com a de Olinda é a mais antiga do Brasil e onde se planejou muitos dos principais versos da literatura romântica brasileira, como os de Castro Alves. Em São Paulo, ali se planejou a abolição da escravatura no país! A grande maioria das leis que hoje regulamentam a civilidade de toda a nação.

Até o sanduíche nacionalmente conhecido como “Bauru”, foi planejado por um estudante das Arcadas de São Francisco. Era diferente do que hoje se serve, mas quem for ao Ponto Chic, lá no Largo do Paissandu, poderá conhecer a versão original projetada por Casimiro Pinto Neto, natural da interiorana cidade que deu nome ao indevido pão com tomate, presunto e queijo. Projetado para se constituir em uma refeição, o verdadeiro bauru leva rosbife, queijo branco em pedaço grosso e dilatado no calor da chapa e, além do tomate, vem com rodelas de pepino.

As falsidades exportadas de São Paulo para o resto do país não se resumiram ao bauru. O mato-grossense Jânio Quadros, que renunciou aos 7 meses de presidência, foi outro. Mas o Ponto Chic chegou a ser frequentado pelos que planejaram a promoção da real cultura brasileira: a Semana de Arte Moderna de 1922. Graças àquele movimento o Brasil descobriu-se em Oswald e Mário de Andrade, Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Flávio de Carvalho e tantos outros.

Nasci em São Paulo, mas só tomei consciência da importância da cidade nos anos 60. Apesar de um dos mais corruptos políticos paulistas ter criado a Marcha de Deus com a Família que apoiou o mais longo e triste período da história da república, o da ditadura militar, naquele tempo planejava-se ali a resistência à opressão do país. Fosse pela UNE de Dirceu e Travassos, fosse pela luta armada de Lamarca ou Marighela.

Mesmo depois de deixar a cidade nos 70, o meu coração continuou batendo pela São Paulo que também resistia planejando muito do que melhor aconteceu no país na década através de Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, José Martinez Correa, Plínio Marcos e tantos outros do teatro, como os muitos dos festivais de música: Chico Buarque, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo. E de todas as artes: Leny Dale, Wesley Duke Lee, Rogério Sganzerla.

Foi em São Paulo que Caetano Veloso e Gilberto Gil, unidos aos Mutantes, Tom Zé, Torquato Neto, Capinam e o Maestro Rogério Duprat planejaram o Tropicalismo.

Também em São Paulo se planejou o lançamento de fenômenos como Elis Regina e Milton Nascimento. Se algo batia no coração do Brasil é porque começara a pulsar em São Paulo. Ainda no inicio dos anos 80, a cada vez que ia a São Paulo, um novo latejar, uma nova vertente: Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e tantos outros que planejaram o movimento dos artistas independentes.

Mas, então, a cada retorno a cidade me parecia mais mofina em uma suntuosidade de pouco conteúdo e total falta de planejamento a soterrar o sorriso por seu humor de Adoniran Barbosa e o lamento por suas tragédias cotidianas de um Paulo Vanzolini. Sofrendo decepções com a cidade onde nasci, cansei-me dela ao perceber que por pura falta de planejamento, falta de qualquer cuidado com as vidas humanas que a ocupam, tornou-se um lugar sem espaço sequer para cuspir, Muitos shoppings, grandes restaurantes, casas de espetáculos, templos de consumo, mas tudo tão frio e artificial quanto à sobrevida em uma UTI onde se esqueceu de planejar a recuperação dos pacientes. Pacientes mantidos por sensação de vida, mas já sem reais emoções, sem real vontade, sem qualquer percepção e possibilidade de futuro, sem nenhum outro plano se não o de ir de lá pra cá, correndo atrás do que há muito perderam e já nem se recordam o que seja.

Tenho muita saudade dos amigos e das mulheres que ali amei, mas hoje, quando vou a São Paulo, fico tentando perceber o que planejam as pessoas além desse eterno e apressado ir e vir sem chegar a lugar algum. Fico tentando senti-los, mas, talvez com medo de que me cuspam nos pés, nada acontece no meu coração.

• Jornalista e escritor

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