sábado, 22 de setembro de 2012

Meu Corpo, esse desconhecido

* Por Risomar Fasanaro

(Para Rosângela Bottairi )

Primeira sessão de RPG: Rosângela Bottairi, a fisioterapeuta, me pede para ficar diante do espelho, e me aponta, com toda a delicadeza de que um ser humano é capaz, os ombros caídos, a cabeça fora do lugar, enfim...me mostra uma mulher que nunca vi, um ser desconhecido cujo corpo se perdeu ao longo dos anos. Depois me encaminha até a maca que, com carinho de mãe, ela aquece antes de cada sessão para que os clientes não sintam frio nesta São Paulo in(v,f)ernal.

Um som inigualável inunda o ambiente, é Keith Jarrett, meu instrumentista predileto. Aquele som da primeira parte de “The Koln concert” me inunda até a alma, e sou tomada por uma emoção muito forte. Me dou conta de que eu, que li e leio tanto, nunca li meu corpo. Nenhuma página, nada. Ele é um livro inédito para mim. Tenho de assumir que ali, naquele consultório, sou analfabeta, completamente analfabeta. Não conheço nenhuma vogal, nenhuma consoante. E imagino a angústia de alguém que nunca aprendeu a ler, não conhece as letras, as palavras, as frases, não consegue ler um livro. É isso que vivo naquele instante. Perdida em uma cidade desconhecida de um país cuja língua desconheço, sem o endereço do hotel onde estou hospedada.

Enquanto me acomodo, penso no que ela me mostrou, e me pergunto: que situações vivi que me levaram a curvar esta coluna dorsal? O que aconteceu, que palavras ouvi, que me feriram tanto que mexeu com minha coluna cervical, e minha cabeça saiu do lugar? Por que hoje meus quadris já não são os mesmos e ainda que me curve, não consigo encostar as mãos nas pontas dos pés? Não sei. E se nem ao menos sabia ler, muito menos interpretar, coisa que em literatura faço razoavelmente bem.

Ah...como queria saber ler cada letra, cada linha deste corpo, cada gesto dessas mãos, cada balanço desses quadris.

Como queria saber quando nasceram, e por que tenho essas duas rugas entre as sobrancelhas, e que revendo fotos de minha infância, percebo, já existiam desde meus sete anos...

Com muita paciência, ela me orienta: respire, expire, empurre esse lado do quadril... Eleve o ombro até minha mão... relaxe...Empurre só esta parte do quadril para a direita. Tento, tento, não consigo. Com suavidade ela me diz: “entre no seu corpo, converse com ele... você vai conseguir. Deixe a cabeça, é aí dentro de você, conversando com seu corpo que vai conseguir. Vamos de novo”.

Tento novamente, mas o que me vem são lágrimas. Elas escorrem lentamente, sem que eu saiba por quê. Ali minha cabeça não manda, o que me move é a emoção. É o diálogo de dois seres que se encontram e conversam pela primeira vez .

Pergunto a ele: por que você não me obedece? Por que não se move para o lado que a Rosângela manda? Mas sua única resposta são as lágrimas. Volto a ouvir a voz dela: “expire, encoste o ombro direito em minha mão, relaxe... abaixe o ombro, empurre esse lado para a esquerda, afaste os braços do corpo...”

E enquanto ela vai orientando meus movimentos, vou tentando descobrir de que curva saiu aquele poema que escrevi quando você partiu sem olhar para trás. Encontro no mais dentro de mim aquela carta em que lhe dizia tudo que me magoava, e que depois de escrita me deixou uma dor tão grande, tão profunda, por lhe fazer sofrer, dor maior que a mágoa que me levara a lhe escrever.

Ela volta a me ajudar: “estique aqui, empurre ali...” E de repente sinto que aquele adeus saiu desses braços que já não me obedecem, que talvez esses ombros que não se alinham tenham ficado assim quando me curvei para beijá-lhe as costas enquanto dormia, e que os quadris não se encaixam, desde que me abaixei quando o vinho entornou sobre a toalha de linho branco, e sem querer quebrei a taça de cristal e me abaixei para apanhar.

Você riu quando as rimas se espalharam, porque eu, talvez um pouco bêbada, caí sentada no chão. E nós dois rimos, que era o que mais fazíamos quando estávamos juntos.

As metáforas dos meus gestos ficaram ali, entortando aquelas vértebras, e eram oxímoros quem sabe a me causar essas distorções, que hoje Rosângela tenta alinhar.

Ela volta a pedir: “entre no seu corpo, converse com ele...” E visualizo, dentro de mim, uma menininha que me ajuda; empurra aqui, ajeita ali, e tudo vai se acomodando, tudo começa a voltar ao seu lugar.

E novamente vejo-o e me vejo: minhas aliterações lhe ferindo, me ferindo, e a dor na alma. Tão grande que em mim se refletia, e molhada em seu pranto era neste corpo que se alojavam os paradoxos que se colaram em mim, sem que eu me desse conta.

Vou tentando aprender que odisséia me conduziu até aqui, em que sexagésima os sermões dos peixes curvaram o corpo desta mulher cansada e envelhecida, e que no entanto luta para se passar a limpo, colocar metáforas que o embelezem, rimas originais que o distingam, de forma que o espelho mostre ser possível ver nos sulcos que há no rosto a mesma suavidade que há nos sulcos da terra por onde correm os regatos, tão belos na natureza.

Que a postura se eleve com a elegância de uma araucária e que os olhos voltem a ter a suavidade que tiveram um dia, para que ao me olhar no espelho me reconheça, e me saiba ler em cada linha, em cada ode, em cada soneto, em cada haicai.

E Rosângela, esse anjo que luta kung fu me diz: viu como você conseguiu? Parabéns! É este o segredo: sentir. Aqui, para conseguir isso, não é a razão que manda, é o sentimento, é o corpo. Você precisa sentir, entrar, conversar com ele e tudo fica fácil. Estão lindas suas costas! Você fez direitinho. Que linda! Diz sorrindo. Tão feliz quanto eu.

Rio, e brinco com ela: “você pensa que sou a ‘menina de ouro?’ Não sou não. Sou de lata”. E ela, que tem tatuado no braço: “meu sangue, minha vida”, escrita em japonês a frase do treinador da Menina de Ouro do filme, me diz: “é sim, você é uma menina de ouro”.

E quem sabe um dia, quem sabe, depois que ela alfabetizar meu corpo, eu possa me ler sem tropeços. Me ler como leio os livros: analisando, interpretando. Melhor; me ler com a mesma emoção com que leio os poemas de Pessoa, de Leminski, sim de Leminski, que tão bem conhecia o corpo e que, quem sabe, por isso tenha criado tão linda obra. Quem sabe um dia eu possa corrigir todos os erros que cometi e que aqui se abrigaram de forma tão concreta. E que esses erros dele saindo, possam deixar a alma em paz. Aquela “paz de criança dormindo” de que tão lindamente falou Dolores Duran.


* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

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