sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Liêdo Maranhão, o matador da tristeza

* Por Urariano Mota

Esta semana, Liêdo e seu filho me deram uma carona. No caminho ele me contou que havia levado um queda, depois de uma tontura, e ficara estendido no chão por umas duas horas. Contou isso sem escândalo, sem dar importância à sua idade, que está na altura de 87 anos. Diante da minha preocupação, como a espantar os cuidados, ele me recitou O Convite à Viagem, de Baudelaire, primeiro em francês, que traduzia adiante:

“As mais raras flores / Misturando odores /A um âmbar fluido e envolvente,/Tetos inauditos,/ Cristais infinitos,/ Toda uma pompa oriental...”

Que beleza. Eu o escutava e não podia esquecer que sem Liêdo boa parte da vida popular do Nordeste estaria sem registro. Ele, como pesquisador, até parece um homem sem escrúpulo, sem freios, porque recuperou sem piedade a fala do povo com uma obsessão até o limite do pornográfico.

O registro que ele fez da fala popular, a fala crua, o flagrante que deu aos nomes rejeitados pela formação hipócrita,tem uma verdade que nos faz rir, como se o popular fosse uma criança crescida. Vocês vão me perdoar, a gente não encontrar isso nem no Lazarilho de Tormes. Quando lhe perguntei uma vez como era seu método, como ele conseguia ser fiel à voz do povo, ele me disse:

“Eu comecei com o gravador. Tinha momento que o camarada dizia assim, ‘doutor, eu só digo isso se o senhor desligar esse gravador’. Eram coisas íntimas, particulares, que ele não queria falar para o mundo. Aí resolvi acabar com o gravador. Então eu ficava conversando o camarada, e eu dizia ‘espere aí um momentinho, que a minha mulher está me esperando ali na igreja’. Aí eu já tinha um caderno, chegava na igreja, começava a escrever o que eu tinha ouvido. Aquelas coisas de sexo, eu escrevia dentro da igreja. Depois eu voltava pra conversar mais.

E com os camelôs era assim: eu passei 10 anos com eles. Então eu já sabia o ‘disco’ de cada um. Aquilo tudo ali é muito bonito, muito criativo, muito poético... Lá na praça tinha uma prostituta, Maria. Ela tinha vários apelidos: era Maria Branquinha, Maria Doida, Maria Chega Cedo, Maria Ligeirinho, porque ela quando estava com um homem, batia nas costas dele, dizendo ‘vá, meu filho, goze logo, vá’. Eu dava a maior atenção a ela. Então ela dizia a mim: ‘olhe, doutor Liêdo, eu gosto do senhor porque o senhor só gosta de rapariga, gente baixa e cabra safado’. Isso pra dizer que eu gostava do povo da praça do mercado”.

O maior universo de Liêdo são os camelôs, os come-vidro, engole-cobra, os cantadores, mas sobretudo os camelôs de remédio, que são muito inteligentes, inventam até nomes para as drogas que vendem. Tem uma que é a “Resina da Gerimataia”. Outra é a “Banha do peixe-elétrico”. E por isso Liêdo me contou certa vez em entrevista:

“Tinha um camelô que vendia catuaba, que era pra tesão, aquela coisa afrodisíaca. Ali é um ambiente de mulher, de prostituta... então ele com a garrafa na mão, uma ‘garrafada’, aquele pessoal todo ao redor, a gente chamava ele de Fazendeiro, porque usava um chapelão, era muito gordo. Pois Fazendeiro pegava a garrafa e dizia: ‘Isso aqui é pra esses tipos de homem que chega em casa de noite, se deita com a mulher, e fica fundo com fundo, feito casa de vila’. Agora você compra este remédio e dê à nega véia, que a nega véia fica quente que só fundo de chaleira. Porque o homem que compra o remédio e não dá à mulher, duas coisas acontecem: ou ele tá liso, ou ele não gosta da mulher’. Eu tenho tudo isso anotado. Eu tenho um livro com tudo isso, ‘Marketing dos camelôs de remédio’”.

De Liêdo fala melhor o que ele salva do povo, como neste registro:

“Microfone é um barraqueiro famoso, do Mercado. Uma vez, um freguês tomando uma sopa no boxe de Microfone, no Mercado, achou uma pedrinha na sopa. Aí o cara reclamou: ‘Microfone, nessa sopa tem pedra’. E Microfone respondeu: ‘Olhe, se fosse brilhante, você não dizia nada’. E completou: ‘Pedra em sopa é um fato natural’. Eu lembro que Microfone, quando foi entrevistado pro Fantástico da Rede Globo, o repórter perguntou a ele de onde vinha o apelido Microfone. E ele disse: ‘Vem da minha loquacidade, porque eu sou muito loquaz’. Eu notei que o repórter ficou todo desconfiado, sem saber o significado de loquaz”.

Daí que nesta semana, ao me despedir preocupado, quando pedi ao filho que me contasse qualquer coisa que houvesse com a sua saúde, Liêdo cortou:
- Fique tranquilo, a gente avisa a missa de sétimo dia... Mas eu tou vivo e bulindo. E bolino, quando posso”.


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Um comentário:

  1. Gostosa incursão pelo mundo popular, espontâneo e autêntico das feiras.
    Destaco: "nomes rejeitados pela formação hipócrita,tem uma verdade que nos faz rir, como se o popular fosse uma criança crescida."
    Distrai e diverte, além de ser um estudo sério.

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