quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A Maldição do Beijo

* Por Edir Araújo

Na condição de testemunha ocular é que narro agora um fato deveras curioso, inusitado e macabro. Durante a Segunda Guerra Mundial eu e outros soldados formávamos o contingente da guarda alemã nos campos de concentração, para evitar tentativas de fuga. Eram duas horas de vigília e duas horas de descanso, num revezamento constante, diuturnamente. Havia entre nós o irreverente Emille, que nos divertia com suas piadas picantes. Os prisioneiros, mormente os judeus, eram vilipendiados por Emille, que vez por outra costumava também currar as judias, enquanto que eu, para não ser apenas espectador e cúmplice, via-me obrigado a participar, embora confesse que me desagradava tamanho vitupério.

Não pensem que eu era um santinho. Mas comparado a Emille, qualquer um me tomaria como um anjo. Ele sempre tirava proveito dos raros descuidos do nosso sargento. Andávamos em dupla e, não sei se por sorte ou azar, sempre formávamos a mesma dupla, efetivamente. Sorte; pelo seu jeito debochado e irônico, suas gargalhadas, que sempre desatavam as minhas, quebrando a monotonia daquelas madrugadas sombrias. Azar; pelos frequentes arrufos com nosso sargento, que já conhecia bem o famigerado Emille, e não nos dava sossego. Isso às vezes me deixava muito irritado. Outras duplas andavam à larga, um tirava bons cochilos enquanto o outro vigiava. Mas com Emille isso não era possível. Além da perseguição do sargento, o ordinário tagarelava o tempo todo e, irrequieto, andava à caça de ousadas diversões.

A maldição? Agora chego lá. Certa noite Emille fez um comentário indecoroso ao avistar uma pobre velhinha judia entre os prisioneiros. Depois jurou que daria um beijo na velha. Confesso que não pude deixar de rir. Curioso, aproximei-me e pude averiguar que a velha parecia dormir, enrolada em trapos. Apesar da frouxa luz que vinha da luminária, pude perceber que era muito feia. Imaginem uma aparência bem infeliz, mórbida. Emille disse - e não pude deixar de rir - “Olha só isso; parece o mapa do inferno!” Posso afirmar que a velhinha tinha todos os traços de uma bruxa; nariguda, enrugada, desdentada. Enfim parecia coisa do outro mundo.

Duvidei que ele seria capaz de coisa tão infame. Então o canalha, em tom de zombaria, começou a chutá-la para que ela se levantasse. Ela postou-se de pé, ao que pudemos vê-la mais nitidamente. Uma imagem rígida, medonha, corcunda. Impassível, imperturbável, as feições duras. Mostrava-se fria como um espectro e parecia nos olhar sem que seus olhos nos vissem. Essas observações eram minhas, peculiares, não sei se Emille seria tão espirituoso para ver o que eu via. Creio que não. Ele teimava e recordo que tentei dissuadi-lo, que arrumasse outra brincadeira. Puxei-o pelo braço, mas, intrépido e arrogante, desafiou-me: “Você acha que eu não faço isso? Pois duvide.” - Eu não duvido, dissera eu, mas não precisa demonstrar. Malditas palavras. Isso só fez aumentar ainda mais a sua irreverência.

Desafiante, avançou para cima da velha, agarrando-a e dando-lhe um beijo na boca. Foi brutal. Fiquei boquiaberto. A velhinha, petrificada, proferiu algumas palavras, amaldiçoando aquele beijo irônico e sarcástico. Pelo que pude entender - já que sua pronúncia era retorcida e, parecia pertencer a uma aldeia dos cantões orientais da Bélgica - a maldição dizia que; “Cada beijo que desse numa mulher lhe custaria um dente.” Isso mesmo. Um mau agouro. Quê momento nefasto!

Mas Emille era um sujeito incrível na sua irreverência extrema. Parecia nunca se arrepender de nada que fazia. E como que para demonstrá-lo - que não se deixava amedrontar - empurrou-a dizendo; “Vá para o inferno, sua velha safada, asquerosa.

Não obstante, a praga havia sido lançada e eu viveria para contar - como faço agora - esta história horripilante. Como diria César; “Alea jacta est”.

Finda a guerra, meu amigo Emille retornou à Rostock, sua cidade natal. Reencontrou sua namorada e ao beijá-la, surpreendeu-se, sentindo gosto de sangue na boca. Cuspiu e lá se foi um dente. Horrorizado, lembrou-se da praga, vociferando; “Bruxa maldita”. Ante o susto e a surpresa da namorada, teve que contar sua malfadada proeza. Esta, ao saber do caso, enojou-se dele e o abandonou. Não podia acreditar que fosse capaz de um ato tão insólito. Portanto perdeu não só o dente mas também a namorada. Dois anos depois, meu ex-companheiro de campana e ex-soldado nazista - como eu - que era de família abastada, após ter perdido mais quatro dentes, à beira da loucura, foi internado num sanatório, em Leipzig.

Sabe-se também que, em virtude de sua debilidade mental, certa vez agarrou sua enfermeira e beijou-a à força, o que custou mais um dente, aliás, o último. Acabando assim completamente banguela. Emille, assim como Nietzsche, nosso compatriota, nunca mais recuperou a razão, até sua morte. Assim cumpriu-se a praga rogada pela estranha velhinha. Faço menção - mais uma vez - ao filósofo, num tom picaresco; Emille foi muito “Muito Além do Bem e do Mal”.

Emille foi um grande patife. Seu estado de saúde foi agravado por uma tuberculose e assim morreu o pobre-diabo, moribundo. Foi sepultado no mausoléu da família. Sua mãe, em prantos, lamentou seu triste fim, olhando pela última vez seu rosto sombrio, os lábios murchos que denunciavam a perda de todos os dentes. Eu estava ali presente mas recuso a narrar meus sentimentos. Os familiares lamentavam profundamente. Morrera tão jovem! Aos 28 anos.

Este episódio marcante, fantástico e assombroso tornou-se famoso por toda a Europa. Porém, em caso de dúvidas - o que não é raro - basta visitar o British Museum, em Londres. Lá se encontra, além de fotografias, extensos artigos publicados em jornais da época, noticiando detalhes do fato, sob o título A Maldição do Beijo. Inclusive o Pravda, principal jornal da extinta União Soviética. Ou ainda, como eu fiz recentemente, visitar sua simbólica sepultura em Berlim - onde há grande afluência de turistas e curiosos o ano todo. Ali há um suposto túmulo do mito que foi Emille, cuja lápide foi erguida - alguns anos após o episódio - por ex-soldados nazistas. A maioria deles conheceu e conviveu com Emille. Eu não participei. A Alemanha desolada. Hitler havia levado nosso país à miséria, e eu, atordoado com tudo isso e tentando esquecer, fui com minha família para a Itália, onde me radiquei e vivo até hoje.

Emille! Quê grande patife foi você! Importante ressaltar que teve, portanto, duas sepulturas; a verdadeira, no mausoléu da família em Rostock e a simbólica, em Berlim. Sobre a lápide desta última, há uma pequena estátua fundida em bronze, representando a velha judia, corcunda, nariguda e desdentada, tal e qual a que o amaldiçoara.

Emille, por sua rara proeza, foi - e ainda é - motivo de muitas piadas de caserna. O fantástico episódio teve grande repercussão, sobretudo entre os exércitos do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Mais tarde um cineasta italiano produziu um filme de terror baseado neste horrível acontecimento.

Emille tornou-se o ídolo dos malfeitores, sem dúvida. Ao visitar sua sepultura - a verdadeira - constatei algo curioso e ao mesmo tempo, torpe; a inscrição lapidar dizia: “Deus tenha compaixão de sua nobre alma”. Na verdade era “pobre alma”. Certamente isso foi obra de algum herético simpatizante de Emille, que trocou o p pelo n . Nobre alma! Imagina!

Sua inscrição tumular diz: (A simbólica, de Berlim):
EMILLE HERZONHEN
“ O Maldito”
(1922-1950)”

 
*Crônica extraída do livro Gritos e Gemidos, pág. 35. Registro ISBN - 978-85-913565-2-2


• Edir Araujo é poeta e escritor independente, autor dos livros A PASSAGEM DOS COMETAS e GRITOS E GEMIDOS.

Um comentário:

  1. Terrível, feio e deselegante, esse ato repulsivo em todos os sentidos. O uso da palavra patife veio a calhar.

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