quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Quase tudo é festa

* Por Mara Narciso

Com 66 anos, dentro de 67, como ele diz, João Farias é mestre catopê do Segundo Terno de Nossa Senhora do Rosário. Começou a acompanhar seu pai, José Soares Farias, caixeiro dos catopês, desde menino, e aos 17 anos, quando aconteceu uma disputa política dentro do terno, entre mestre e procurador, ele, de posse dos instrumentos, e conhecedor das tradições religiosas, das músicas, dos rituais e da hierarquia, foi aclamado mestre por 30 componentes, e o terno continuou. Os devotos usam roupas brancas e cocares de fitas multicoloridas, uns com bordados e espelhos e outros com penas de pavão.

Na pequenez humana queremos tudo explicado por razões lógicas e contado em anos (são 173 anos de fé, dizem), que é o que sabemos medir. Mas, por detrás dessa festa, dessa alegria, dessa devoção, há muita dor e um quase abandono. Foram tantas as lutas, falta de apoio e de dinheiro, além da redução de jovens interessados em continuar. Tantas vezes aconteceu aquele acaba não acaba, mas a fé prevaleceu. Hoje vemos crianças pequenas acompanhando a festa.

Um padre juntou as festas religiosas de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito, e do Divino Espírito Santo em três dias seguidos, amarrando em agosto coisas separadas, e acontecidas em meses diferentes. A fé aceitou, ganhou força, e assim, os catopês, marujos e caboclinhos, representando negros, portugueses e índios do norte de Minas, ficaram reunidos em uma só manifestação.

A professora Raquel de Paula falou que as Festas de Agosto não são folclore, e sim Cultura. Mostrou a foto de um homem maduro com uma criança ao colo, estando ambos paramentados de catopês e sentenciou: esta criança não está vestida de catopê. Ela é catopê.

Há quem conte histórias de benemerência, de apoio político, de ajuda comunitária, de divulgação, de ação midiática. Há os contra e os a favor como em tudo que acontece. Os catopês não reclamam dos apoios e sim da falta deles. A mídia invade a festa sacra, rica em ritmos, vestimentas, música e simbolismo. Novos hábitos são incorporados, ano a ano, pois a cultura vive, não é estática.

Mestre João Farias, figura icônica reverenciada em agosto, precisa ser carroceiro o resto do ano, pois, aposentado, não pode parar de trabalhar. Tem dois filhos que não seguiram ao pai, e dois netos que seguem sendo catopês. A sua esposa Benedita, de 59 anos é cega há anos, vítima do glaucoma. Ele não maldiz. Aquele homem alto, tão alto, tão maior do que os outros se encurva para falar com seus pares. Assim, meio desengonçado, atravessa a cidade como devoto fiel de Nossa Senhora do Rosário, dançando e cantando firme, levado pela vibração dos seus tambores e caixas, fazendo os volteios, o ir e vir, que segundo disse, chama-se “meia lua”. A festa dá tristeza quando acaba, mas a fé dura o ano todo. “A santa faz milagres e há quem faça chantagem com ela, para conseguir uma graça maior”, ele entrega.

Na sombra das árvores da Praça Dr. João Alves, o mestre espera a hora da saída do cortejo, recebendo com boa vontade pessoas que posam a todo minuto ao seu lado, para tirar fotos, incontáveis, e jornalistas e estudantes fazendo perguntas, sempre as mesmas perguntas. Tudo o que vão questionando, ele responde sem peias e sem censura. Sobre a cor da sua pele, ele diz ser morena.

Não há impaciência alguma em João Farias. Nem de longe há soberba ou postura de celebridade. Ao pé da letra, letras estas que ele não estudou, pois conta nunca ter ido à escola, no ano que vem completarão seis décadas de desfile, e cinquenta de mestre. Seu sobrenome é grafado Faria nos jornais e revistas, mas na carteira de identidade tem um “s” final, sendo Farias, sim. Sua fé e a convicção que o movem têm mais importância que os detalhes, mas reafirma que no seu terno não dançam mulheres.

Conta que na missa do último dia 15 de agosto, dentro da Igreja do Rosário, ele sentiu a presença de Seu Indalício, patrão e amigo nos tempos em que trabalhava na fazenda Aliança. Indalício vibrava com a festa dos catopês, e fez o favor de morrer em 1981, no dia 15 de agosto, quando tudo começava. De olhos baixos, Mestre João Farias relembra: cheguei com o meu povo. Estaquei na porta, e tinha de entrar. Para cada lugar tem o jeito certo de chegar e sair. Entramos tocando e cantando, com batuque, lágrimas e suor misturados. Ele estava lá deitado. Dançando, demos umas voltas no caixão e fomos embora. Lembrar dói muito até hoje.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade” – blog http://www.teclai.com.br/

2 comentários:

  1. Pelo jeito, esse folclórico mestre Faria(s) sozinho já daria um livro. Imagino que o personagem seja de Montes Claros - que me parece ser um manancial inesgotável de tipos singulares. Parabéns por mais este ótimo texto, Mara.

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  2. Estava viajando e sem internet. De fato a história de João Farias daria um livro. Tenho vontade de escrever tal livro. Quem sabe um dia? Obrigada pelo comentário, Marcelo!

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