terça-feira, 28 de agosto de 2012

Ou dá ou desce – II

* Por Fernando Barreto

Capítulo 2 - Ah, é o Braga!

Brito esperava pela entrega de uma pizza à noite em seu apartamento pouco antes das 23 horas de um domingo de Julho de 2011. Até aquele momento, embora soubesse que no dia seguinte precisaria comprar mais maconha, não pensava que a quantidade ainda disponível se resumia apenas ao baseado que acompanharia as cervejas até que a pizza chegasse. Achava que teria o baseado da manhã seguinte. Isso lhe daria algum conforto. Demoraria mais para sair de casa. Já estava com mais sono do que fome, mas sabia que o cheiro do queijo derretido da pizza abriria seu apetite. Dito e feito. Dormiu sem escovar os dentes, no pequeno sofá de sua sala, roncando mais que uma motosserra.

Na manhã seguinte, havia um pedaço de pizza de calabresa e outro de aliche. As latas de cerveja vazias haviam preenchido o pequeno cesto de lixo de sua sala e seria preciso esvaziá-lo. A maconha tinha acabado, e embora tivesse um café da manhã nobre para saborear, com muito polenguinho, torradas, frutas e café, além dos pedaços de pizza que sobraram, ele.pensava apenas que estava com preguiça de sair e procurar Galvão na ponte para comprar fumo.

Eram 9 horas e 34 minutos da segunda-feira de acordo com o relógio do microondas, e o pandemônio da região da Avenida Paulista já estava instalado há horas. Mesmo morando no décimo sexto andar podia ouvir durante o dia o barulho intenso das ruas que circundavam seu prédio. Só não dormia até o meio dia por causa do barulho, inclusive de helicópteros. Quando estivesse acostumado a dormir com aquele barulho, estaria vivendo em parte como um mendigo. Faltaria apenas aprender a dormir sob o sol, todo mijado e cagado e com fome.

Nem mesmo a visão desse inferno para os outros era capaz de fazer com que Brito se sentisse privilegiado. Ele tinha condições de se mudar de São Paulo se isso lhe parecesse conveniente. Alguns fatores típicos de grandes cidades o faziam sofrer, mas gostava de olhar de sua janela e ver as pessoas que vinham de bairros distantes para trabalhar na Paulista. Muitas delas realmente sofridas, machucadas, se arrastando pelo concreto enquanto seus sonhos vão sendo diariamente esmagados como percevejos, mas ainda assim continuavam a dormir pouco e a trabalhar muito. Eram retardatários moribundos na corrida por dignidade. Com todo esse sofrimento, essas pessoas colhiam apenas decepção e amargura, invariavelmente. A rotina era o modo com que enfrentavam o caos.

Naquela manhã, assim que pisou em sua sacada para olhar para a rua, o sol começou a castigar-lhe a vista, a cabeça e os ombros. Voltou para dentro do apartamento e irritou-se com a falta de maconha e com a consequente necessidade de interromper seu confortável isolamento doméstico para ir buscar mais. Tomou seu café da manhã, que naquele dia foi o que sobrou da pizza da noite anterior e uma pêra e uma caneca grande de café preto, então fumou um cigarro e foi procurar Galvão na ponte para comprar mais maconha.

Para sair Brito vestiu uma bermuda azul escura, uma camiseta branca dos Pixies toda descasacada pelo uso e pelas lavagens e que teve suas mangas cortadas e virou uma regata, exatamente a mesma roupa com a qual dormira, e calçava chinelos de borracha. A viagem de elevador do décimo sexto andar até o térreo pareceu demorada demais, principalmente pelo fato de o elevador ter parado no décimo segundo e no sétimo andar para que outros moradores entrassem. No hall de entrada sentiu como sempre o pensamento do porteiro com relação a ele, um pensamento que julgava Zé Ronaldo como um vagabundo mimado. Já na calçada do lado direito da ponte, por onde Brito descia, um cachorro vinha trotando no sentido contrário. mais adiante, algo em torno de 50 metros, na calçada do lado oposto, Galvão estava sentado num caixote de madeira sob a sombra que um hotel vizinho lhe proporcionava, conversando com um sujeito.

O humor de Brito melhorou um pouco com a breve saudação de Galvão que quase imediatamente lhe apresentou o sujeito com quem conversava. 'Brito, esse é o Braga. Braga, esse é o Brito' – disse Galvão.

Braga, um sujeito de cerca de um metro e setenta de altura, cabelo raspado com máquina 1, braços irritantemente curtos em relação ao tronco, que estava oculto por um blazer de lã que não combinava com os 28 graus que ferviam os miolos de Brito. Braga não precisou de mais do que um segundo para comentar a respeito da camiseta de Brito, dizendo que gostava de Pixies e que vivia imerso em projetos musicais, teatrais, políticos e tudo mais. Tão rápida quanto a tentativa de interação por parte de Braga foi a repulsa que Brito sentiu do sujeito. Alguma coisa no aspecto geral de Braga fazia Brito pensar que alguma coisa tinha dado muito errado logo no começo da vida do cara, e isso se somava ao fato de Braga parecer ter sido levemente molestado naquela manhã. Molestado por mais um amanhecer. Molestado pelo sopro que a vida dava diariamente naquela vaga fagulha de esperança que ainda movia as massas. Era um jovem pretensamente engajado que não iria se rebelar contra as bizarrices da vida. Braga era uma peça ainda maléfica nessa grande máquina social Uma máquina descontrolada que trabalhava sem paixão. Brito precisava se afastar disso porque sabia o que viria a seguir.
- O Braga trabalha na Fiesp... – disse Galvão.
- Olha só!! – disse Brito, que imediatamente mudou de assunto emendando: 'Então Galv]ao, preciso daquela paranga de 20...'
- Vou logo ali pegar, Britz... – disse Galvão, deslocando-se 20 metros e removendo um tijolo que tampava um buraco na mureta que havia entre as calçadas da ponte e a faixa de asfalto entre elas. Até que Galvão voltasse, segundos depois, Braga teve tempo de perguntar o que Brito fazia e onde morava e embora Brito soubesse que esse seria um limiar perigoso para ser transposto, foi logo dizendo: 'Moro logo ali na Rio Claro e sou escritor'. Brito detestava quando perguntavam o que ele fazia.

Braga reagiu à resposta de Brito com entusiasmo, comentando sobre sua aptidão jornalística e literária. "Eu tenho um blog!!! Hoje mesmo postei uma crônica que escrevi sobre a banda de uns amigos meus!" Brito já sabia disso antes que Braga falasse. Brito odiava blogueiros. Odiava agitadores culturais, especialmente os mais jovens e 'ecléticos'. Brito realmente tinha sonhado ser um escritor de verdade, mas desistiu definitivamente por causa da ascensão dos blogueiros.

As comodidades materiais de Brito o faziam ambicionar menos por sucesso de público em suas empreitadas pessoais. Apenas não podia perder seu apartamento por causa de excesso. Esperava não sofrer acidentes que mutilassem seu corpo. Todos correm esses tipos de risco, mesmo os cautelosos. E fora isso, Brito não tinha muito a perder. Um eventual sucesso por conta de um livro despretensioso, por exemplo, poderia lhe trazer mais chateações do que um eventual enriquecimento financeiro pudesse pagar. Falaria do que? De sua vida? Assim seria chamado de burguês por universitários hippies de chinelo e barba. Era um recluso com o bônus da modéstia. Já Braga ao falar punha ênfase em tudo que fazia. Braga era um maldito agitador cultural. Conhecer Braga foi o único dano que a maconha lhe causou. A culpa não era da maconha. A culpa era do Braga. E Braga não tinha o ônus da modéstia. Estava tudo ali: a pretensão de ecletismo, o gosto musical equivocado, o frenesi juvenil mal direcionado. Um jovem panfletário burro e inconveniente.

A área sombreada da ponte onde Galvão, Brito e Braga estavam reunidos naquele momento era pequena e ia diminuindo gradativamente com a mudança da posição do sol, e não havia qualquer outra coisa passando pelos pensamentos de Brito que não fosse voltar a seu apartamento o mais rápido possível. Perto deles havia um velho mendigo da Bela Vista jogado sem qualquer sinal de respiração e que àquela altura já tinha sido abandonado pela sombra e começava a fritar sob o sol. Os dois botões de baixo de sua camisa estavam faltando e era possível ver sua barriga peluda e suja.

A missão estava cumprida e Brito poderia sentir um sabor especial quando chegasse em casa. Esse sabor especial se devia ao fato de ele ter podido por alguns instantes sentir o clima descontrolado das ruas que contornavam seu prédio. Isso seria mais especial do que simplesmente ter tudo ao seu alcance em sua casa logo que acordasse. O prazer de seu ócio seria realçado depois de ver tanta gente de longe que vinha trabalhar na região da Avenida Paulista. Talvez aproveitasse menos seu conforto se não tivesse que sair nem ao menos para comprar sua maconha.. "Brito, coloque um baseado do seu pra gente fumar até chegar ali na frente, no final da ponte. Eu guardei o meu na mochila e vai ser osso achá-lo agora! A seda tá na mão!" – disse Braga logo depois de se despedirem de Galvão.

Como era de se esperar, Brito não escapou da companhia de Braga até que chegassem à esquina da Alameda Rio Claro com a Rua São Carlos do Pinhal, onde Brito e Braga então rumariam cada um para um lado, o primeiro andando poucos metros para a esquerda até seu prédio na Rio Claro e o segundo no sentido contrário, em direção à Avenida Paulista, rumo ao prédio da Fiesp. Até ali andaram por cerca de 200 metros juntos, tendo atravessado quase toda a extensão da ponte e mais a quadra lateral do antigo Hospital Matarazzo.

Foi o suficiente para que Braga descobrisse o endereço de Brito, pois este apontou para seu prédio quando chegaram à tal esquina dizendo de forma seca: "Moro ali! Até mais!"

A distância entre o prédio da Fiesp, onde Braga trabalhava, e o prédio onde Brito morava podia ser percorrida em menos de cinco minutos de caminhada.

O consumo de maconha por Brito era considerado moderado por ele e essa análise era feita com a comparação do quanto era fumado semanalmente por ele com os padrões normais dos maconheiros que ele conhecia. Era apenas algo que lhe trazia algum alívio para as tensões de seu microcosmos. Brito não tinha anseios de sucesso social, ao contrário de Braga, que tinha um grupo mambembe que misturava música improvisada com encenação teatral também improvisada. Infelizmente esse tipo de modalidade estava em voga naqueles dias de 2011 e provavelmente continuaria por muito tempo. Eram tempos em que a ânsia juvenil por divulgar qualquer manifestação 'artística' via internet era mais forte do que a vontade ou a capacidade de criar algo que pudesse realmente ser chamado de arte. Havia a possibilidade real de se ter contato com o underground propriamente dito, talvez como nunca antes. O 'faça você mesmo' também nunca tinha sido tão mal interpretado como naqueles tempos. Todo mundo era artista e geralmente os trabalhos apresentados eram simplesmente o jeito de ser no 'artista' em questão. Brito em muitas ocasiões assistiu a intervenções feitas por 'eus artísticos' de jovens que se julgavam talentosos e verdadeiros representantes da tal cena alternativa das artes, mas que ao mesmo tempo sonhavam pelo reconhecimento no mainstream. Julgavam-se incompreendidos e injustiçados por não conseguirem viver só de sua 'arte'.

Naquele primeiro encontro, Braga não teve muito tempo para falar mais sobre esse seu projeto artístico, muito mais por ter que voltar ao trabalho na Fiesp do que por não ter tido vontade de ir à casa de Brito conhecer melhor esse potencial novo amigo. Braga normalmente entrava às 10 horas no trabalho e naquele dia estava atrasado em 40 minutos, mas mesmo assim preferiu ir até Galvão buscar sua maconha pela manhã do que esperar até o fim do expediente e correr o risco de não encontrá-lo na ponte quando saísse do trabalho.

Do momento em que se despediu de Braga na esquina próxima a seu prédio até o começo da noite, o dia de Brito tinha sido padrão. Fechara um grande baseado ao entrar no apartamento, fumara-o até um pouco mais da metade, ouviu o 'Closer To Home' do Grand Funk Railroad (Brito colecionava discos de vinil desde a mais tenra infância e esse disco e essa banda em especial nunca deixavam de ser incríveis ), fez flexões e barras na sala de seu apartamento, atendeu ao chamado de sua mãe para que fosse almoçar no apartamento dela quando já eram quase três horas da tarde, voltou para seu apartamento, preparou uma grande caneca de café forte e sem açúcar, fumou a outra metade de baseado, e adormeceu para ser acordado pelo interfone às 18 horas e 21 minutos. Era o horário que indicava o relógio do microondas. O porteiro anunciou que Braga estava lá embaixo.

Prontamente Brito pediu que o porteiro dissesse que não havia ninguém em casa. Brito não havia entrado em detalhes sobre sua família, nem sobre o fato de dispor de um apartamento só para ele, de modo que Braga pode perfeitamente ter pensado que uma outra pessoa atendeu o interfone para dizer que Brito não estava. E então Brito já tinha esquecido de Braga. Achou que nunca mais o veria. Não chegou nem ao menos a alimentar a irritação que sentiu ao conhecê-lo. Brito pensava ter sido somente uma implicância momentânea. Modesto que era, ainda pensou em seu subconsciente que Braga jamais lembraria dele, a menos que se encontrassem de novo.

O fato é que no momento em que atendeu o interfone Brito demorou alguns segundos para associar o nome de Braga à sua pessoa e quando se lembrou de quem era, sentiu uma certa repulsa pelo sujeito. Aos 38 anos, Brito era para seus poucos amigos de verdade uma mistura de jovem e velho, algo típico de sua geração e de sua época. Bastava não estar estragado pelos excessos da tenra juventude e ao mesmo tempo ter bom gosto musical para ficar como ele. Também alternava ranhetice e humor ácido.

Brito ainda não lidava tão bem com o fato de sua intuição funcionar incrivelmente quando o assunto era se identificar ou não com uma pessoa assim que a conhecia. Eram raras as vezes que sua implicância inicial não se confirmava nos encontros seguintes com a pessoa em questão. Quando dispensou Braga através do porteiro, Brito lembrou que sua vida era realmente sossegada, porque há muito tempo não sofria com uma visita surpresa. Era basicamente um sujeito solitário e avesso a extravagâncias sociais. Definitivamente não sofria de carência afetiva, nem carência de atenção por parte das poucas pessoas que realmente o cercavam. Seu apartamento era de frente para a rua e da sacada de seu apartamento no décimo sexto andar pôde ver Braga caminhando ainda dentro do condomínio em direção ao portão da rua e dali em direção à Paulista. A temperatura era baixa, quase fazia frio

A cena lhe pareceu patética, porque Brito não compreendia bem o que poderia levar um cara jovem como Braga a sair do trabalho e ir visitar um cara mais velho e que ele não conhecia, ao invés de ir fazer o que quer que fosse. Tomar cerveja. Ir para casa. Fazer QUALQUER OUTRA COISA que não fosse visitá-lo. Parecia que as pessoas tinham tanto medo de se verem solitárias que jogavam fora o amor próprio com muita facilidade. Isso era o resultado crônico de uma busca completamente equivocada pelos valores relativos da felicidade e do sucesso. A falta de momentos de introspecção agravava dia após dia a condição infeliz desse tipo de gente.

Brito não tinha um emprego. Não precisava de um, pelo menos no que dizia respeito à parte financeira. Ainda assim tinha muito pouco tempo para fazer visitas para quem quer que fosse. Brito não tinha emprego mas tinha trabalho. Havia sido editor da revista Porrite, um tipo de fanzine que tratava de música alternativa e do universo masculino. Mantinha esse projeto junto com um colega do tempo da faculdade. O sujeito tinha uma gráfica e colaborava com a infraestrutura de impressão, enquanto Brito era o responsável pelo conteúdo. A revista foi importante para que Brito descobrisse que não gostava de jornalismo, especialmente quando o colega sugeriu que fizessem uma versão para a internet. Aí então Brito resolveu mandar tudo ás favas.

Com o fim da revista e a ascensão dos blogueiros que Brito tanto odiava, ele decidiu ocupar seu tempo como o faria um cara mediano, nem gênio, nem burro. Ocultando seus focos de vulnerabilidade causada pela companhia das pessoas de sua idade, que pareciam aposentadas para as atividades mais vitais, passou a se sentir mais forte. Não gostava nem de pensar em como seria a vida de um gerente de banco ou um cirurgião, por exemplo. Seus vizinhos tinham esse tipo de emprego, viviam vidas metódicas e higiênicas. Brito era diferente. Se precisasse de uma atividade remunerada teria uma livraria ou uma loja de discos. Pelo menos era isso o que passava por sua cabeça quando pensava no assunto, e geralmente pensava no assunto a contragosto quando algum parente comentava sobre ele não ter emprego. Era uma pessoa reservada e via essa virtude em poucas pessoas. Sua vizinhança parecia paranóica demais para preservar sanidade suficiente e viver sem alarde.

Naturalmente Brito tinha um grupo de amigos que encontrava com certa regularidade, divertia-se com eles. Tinha aventuras e desventuras com mulheres que conhecia através de amigos. As mais jovens era sempre muito podadas pela superproteção de suas famílias e as mais velhas queriam estabelecer um tipo de compromisso que Brito sabia que não valia a pena. Ele prezava muito sua privacidade e isolamento. Não queria fazer mais amigos e não queria fazer inimigos. Pagava por serviços prestados e não por relações pessoais anexas a esses serviços. Vivia numa área cuja densidade demográfica era muito elevada, e isso fazia com que Brito demorasse cada vez mais a se sentir realmente só. Mesmo quando chegava a esse ponto, bastava pensar na presença de gente como Braga para que a tristeza da solidão se convertesse em alívio por estar só. Não gostava de mandar ninguém embora para que não parecesse deselegante. Sendo assim, as visitas inesperadas o desestabilizavam, principalmente quando eram feitas por desconhecidos ou semidesconhecidos. Braga trabalhava muito perto dali e a intuição de Brito dizia que aquele garoto não desistiria facilmente de fazer novas amizades. Brito queria que sua reputação social se limitasse ao que pudesse fazer de bom, e por isso podava seus excessos comportamentais em público. Por exemplo: se lançasse um bom livro quando tivesse 50 anos e ficasse eternizado por isso, ótimo. Não precisava imprimir uma imagem de chato anti-social junto da imagem de bom escritor. Sua reputação social permaneceria intacta.

Braga não parecia ser exatamente um mau sujeito. Suas intenções não eram das piores; eram apenas equivocadas. Uma caricatura bom-mocista. Era um pouco abusado na busca por intimidade e com um tipo de entusiasmo pela sociabilidade que Brito já tinha perdido havia anos, aprendendo a aproveitar a liberdade que a falta de comprometimento com gente inútil podia proporcionar. Já Braga visivelmente ansiava por algum sucesso social. Era incompatível com Brito e não se dava conta disso. Pensava ser maduro em comparação às outras pessoas de sua idade e parecia não se cansar de tentar provar isso a quem estivesse por perto. Era do tipo que usava e abusava das redes sociais da internet para se manter onipresente em eventos e em grupos de pessoas em que ainda não havia se infiltrado.

A parte mais desagradável da situação para Brito era o fato de que caso não falasse com clareza para Braga sobre a incompatibilidade entre eles, teria que aguentar o sujeito várias vezes por semana visitando-o e tentando ser prestativo, e o problema de Brito era que ele não gostava de falar, principalmente sobre coisas que poderiam magoar as pessoas.

No dia seguinte ao primeiro encontro entre eles, uma terça-feira, Brito já tinha retomado sua tranquila rotina e esqueceu de Braga e de sua visita no dia anterior. Até a sexta-feira Brito matou seu tempo com filmes na TV a cabo, futebol europeu, flexões e barras, a leitura de uma edição sebenta de 'Viagem ao Oriente' do Hermann Hesse (a quem pensava ter uma dívida que antecediam a sexta-feira passaram rápida e agradavelmente).

Por causa de seu estilo de vida calcado em relativo conforto material, as sextas-feiras não eram tão especiais para Brito como eram no tempo em que ele era um estudante do segundo grau. Não eram também tão especiais como eram para a maioria das pessoas descontroladas com quem ele tinha que conviver em qualquer setor da vida. Ele não as aguardava com tanta ansiedade, a não ser pelo fato de que reservava naquela época os fins de semana para o consumo de álcool, pelo qual tinha uma paixão muito intensa desde a adolescência, mas que a partir dos 35 anos começou a lhe pesar significativamente no organismo. A maconha lhe ajudava na abstinência do álcool ao longo dos dias da semana. Bebia duas ou três vezes por semana, geralmente de sexta a domingo. Brito era fã de uísque e vivia se indispondo com pessoas que falavam muito sobre uísque mas nunca bebiam. Esses geralmente tomavam só cerveja e isso irritava Brito.

Na sexta-feira, dia de uísque, Brito saiu para comprá-lo e como queria comer azeitonas, aproveitou para buscá-las. Sem qualquer preocupação que não fosse evitar o contato com os vizinhos ao sair do prédio, Brito encontrou Braga na Paulista quando ia para um mercado na Rua Pamplona. Braga estava saindo para seu almoço. Numa fração de segundo Brito teve tempo de tentar fingir que não o viu, sabendo que já tinha sido visto e ao mesmo tempo se deu conta de sua incapacidade em lidar com surpresas.
- Ei, Brito!!! Brito!!! E aí?? Já almoçou? – perguntou Braga, dirigindo-se a ele em meio às muitas pessoas que atravessavam pela faixa de pedestres da Paulista.
- Ei, Braga... Ainda não almocei não, estou ocupado com outra coisa – disse Brito.
- Onde você está indo? – perguntou Braga.
-Vou ao supermercado, ali na Pamplona – disse Brito, pensando que Braga então retomaria seu trajeto original, provavelmente rumo a algum restaurante localizado na direção contrária. Isso não aconteceu. Braga parecia ter se animado com o inesperado encontro com o recluso Brito, que havia dado ordens aos porteiros de seu prédio para que no caso de Braga aparecer procurando-o, dissessem sempre que ele não estava. Brito não sabia até então, mas Braga havia procurado-o algumas vezes depois da ocasião descrita alguns parágrafos acima. Sendo assim, Braga estava eufórico por encontrar ao acaso o misterioso Brito.
- Ah, então eu vou com você! Estou indo almoçar, aproveito e compro algo pra comer no mercado mesmo, assim talvez eu gaste menos e aproveitamos pra conversar nesse meio tempo... Quanto tempo, hein!! Passei na sua casa algumas vezes e você estava sempre fora...

Seguiram então ao mercado. Brito estava tomado por um tipo de tristeza que só as surpresas inconvenientes podem trazer. Não sentia raiva. Só uma certa tristeza por não ter podido estar sozinho naquele momento. Quando entraram no mercado, que ficava numa área muito movimentada da Rua Pamplona naquele horário por causa do grande número de restaurantes, combinaram de se encontrarem na fila do caixa e partiram para buscar o que queriam. Quando se encontraram, Braga trazia dois sanduíches naturais e uma caixinha de suco de maçã. Brito trazia um Red Label e um vidro de azeitonas, sabendo que seria questionado sobre uma eventual festividade.
- Porra, Brito... Uísque? Qual vai ser o rolê hoje? – perguntou Braga.
- Ah, não é nada de especial. Vou visitar meu pai e vamos tomar umas goladas... – respondeu Brito.

Brito não sabia que Braga já havia ouvido do porteiro do prédio que o pai de Brito era vizinho de andar de Britão. Braga logo concluiu que a festinha seria ali mesmo na Alameda Rio Claro e passou a tarde de sexta-feira esperando que as horas passassem rápido. Definitivamente faria uma visita a Brito, pois sabia que ele estaria lá. Brito sabia que não tinha muito controle sobre o que os outros pensavam ou faziam e não tinha controle sobre o que os porteiros falavam, ainda que estivessem atendendo a um pedido seu. Brito tinha consciência de que não era exatamente uma boa companhia para quem ainda não o conhecesse bem ou mesmo para algumas pessoas que o conheciam desde o seu nascimento. Simplesmente não gostava de conversar e não via nenhum crime nisso. Ao mesmo tempo, Brito era incapaz de mandar alguém como Braga ir procurar outra coisa para fazer. Parecia algo maldoso demais. Brito achava que deveria ter paciência nessas horas. Isso lhe causava um tipo de sofrimento que não conseguia explicar para seus poucos amigos realmente próximos. Nem ao menos mencionava isso a seus amigos, porque nessas horas eles sempre lhe diziam que Brito era mal acostumado e um vagabundo boa vida. Brito também não via nenhum crime nisso.

Leia o terceiro capítulo deste conto na edição de amanhã.

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