sábado, 18 de agosto de 2012

De Patos, Gansos e Cisnes

* Por Urda Alice Klueger

Para Jorge Gustavo Barbosa de Oliveira

Parte da minha infância de antes do tempo de ir para a escola aconteceu na Praia de Camboriú, que naquele tempo ainda não se chamava Balneário, nem era município e nem tinha um prediozinho sequer. Vivíamos num mundo de casas baixas, separadas por amplos terrenos baldios onde vicejavam florinhas amargas e as demais plantas que dão na beira do mar, e a Avenida Central, que então já existia, desembocava direto numa praia de areia sem o menor sonho de calçamento, e na minha lembrança, a casa da esquina parecia ser um castelinho, para o qual eu imaginava muitas histórias. Então, depois do castelinho, a vegetação se afastava da linha da praia e havia mais três casas, e então era a boca da Lagoa.

Em tempos normais era tudo areia seca, boa para brincar e fazer castelos e ruas e sonhos, mas se chovesse, dependendo da quantidade de chuva, a Lagoa transbordava e podia dar origem a um mero riozinho a escorrer pela praia, ou podia virar um furacão que escavava intransponível abismo de águas violentas que desaguavam no mar.

Do outro lado da boca da Lagoa havia um restaurante chamado “Terraço Boa Vista”, que era onde eu morava, e no lugar dele, hoje, há grande arranha-céu – e no lugar da boca da Lagoa há aquele recuo da Avenida Atlântica de Balneário de Camboriú que virou praça, e ninguém mais não lembra que aquele recuo e a praça existem porque ali era a boca da Lagoa e nada podia ser construído, e que quando a especulação imobiliária secou a Lagoa e matou todos os seus habitantes, de alguma forma já ficara aquele recuo na praia e a criação de uma praça tornara-se irreversível.

Pois bem, era ali que eu morava antes do Tempo da Escola, bem do lado da boca da Lagoa, e ela se estendia, profunda e misteriosa, por detrás da nossa casa, do nosso terreno, dos terrenos dos vizinhos, e ia até muito longe, muito longe, por trás do lado norte da praia, e num lugar que já não sei precisar mais hoje, ela tinha uma outra boca que também virava abismo intransponível nas grandes chuvas. Vagamente, minha memória me informa que lá na outra boca era um lugar que a gente chamava de Praia Hotel.

Eu passei aqueles anos da minha infância brincando na praia, mas brincando muito mais em volta da Lagoa. A Lagoa era uma constante fonte de surpresas e mistérios, e o seu entorno era perfurado por muitos milhares de buraquinhos maiorzinhos e menorzinhos, e em cada um deles morava um pequenino siri ou caranguejo, e eles faziam umas tampinhas redondas tão bonitinhas para fechar seus buraquinhos de moradia, que eu podia passar o dia todo a espiar os sirizinhos levantando as portinhas de suas casinhas e indo lá fora dar uma volta e tomar um banho na Lagoa – que mundo encantado era aquele!

Os mistérios não paravam aí, no entanto. Havia também os grandes siris, os peixinhos e peixes de diversos tipos e tamanhos, uma ilha escondida lá mais para diante, na Lagoa, onde nunca fui, inesperadas canoas a remo com pessoas estranhas que podiam aparecer, de repente, vindo de lá muito longe, de outro lugar da praia, os animais domésticos. Nos fundos da nossa casa, do outro lado da Lagoa, havia um pasto com um ou dois cavalos baios, que me impressionavam profundamente porque dormiam de pé e pareciam não se importarem de ficar dias e dias apanhando chuva. Na nossa casa, havia um arsenal de animais: a cachorra Diana, que depois seria mãe de Laika e Rin-tin-tin, alguns vagos gatos dos quais não lembro o nome, um terreiro cheio de galinhas, um chiqueiro com porcos que gostavam de tomar cerveja, e que quando ganhavam cerveja depois dormiam profundos sonos cheios de tremuras e de profundos roncos, uma mansa pata preta e branca e um altaneiro casal de gansos, barulhentos e agressivos, que cuidavam ciumentamente do seu território. Os adultos nos contavam histórias de crianças que tinham sido mordidas por gansos e ficado com marcas das bicadas para sempre, o que fazia com que respeitássemos muito aqueles belos bichos brancos!

Tenho certeza que o mistério daquele mundo se acentuou sobremaneira quando nasceram os cachorrinhos de Diana, e pelo nome da Laika, dá para precisar o tempo, saber que já era depois que os soviéticos haviam mandado uma cachorrinha para a órbita terrestre. Incontáveis foram os acontecimentos e mistérios havidos ali naquele lugar da minha infância, e um que me excitava sobremodo a imaginação era a tal ilha, onde nunca me era permitido ir porque os cuidados da minha mãe impediam a gente até de sonhar em subir numa canoa. Pois não foi justamente a nossa pata quem acentuou o mistério, indo até à ilha à nado, todos os dias, e fazendo lá um ninho que encheu de ovos? Tanto a pata vivia em prol da ilha que a minha mãe criou coragem de subir numa canoa, e com o Osdida ou o João Jorge Seibert, já não lembro, que eram empregados do meu pai, foi até à ilha ver o que estava acontecendo por lá. Voltou com o avental cheio de ovos, e as histórias do famoso ninho que nunca conheci, que a pata tinha recoberto de penas branquinhas, uma coisa mais linda na minha imaginação! Não me conformava: por que é que podiam nascer pintinhos e cachorrinhos, e não permitiam à pata chocar seus ovos? Ouvi uma explicação meio de pé-quebrado, que os ovos da pata não descascariam porque ela não tinha um marido, coisa que absolutamente não entendi, e que continuou me deixando em plena militância a favor da pata.

Já a gansa e o ganso eram um casal, e portanto, poderiam gerar gansinhos se se permitisse que a gansa chocasse seus ovos – mas cada imenso ovo que a gansa punha era devidamente recolhido para ser usado na Páscoa – e então abria-se só um buraquinho na extremidade de cada ovo e derramava-se o seu conteúdo num prato fundo, do que resultava uma grande fritada de ovos que nós, crianças, comíamos, extasiadas! Quando chegou a Páscoa, meu pai pintou cada ovo daqueles de tinta à óleo azul claro – e a cada Páscoa eles continuaram sendo reaproveitados na minha casa, ao longo de toda a minha infância.

Então já falei de patos, de gansos ... cadê os cisnes? Ah! Um dia os cisnes vieram! Estavam num grande e colorido livro que a minha irmãzinha Margaret ganhou do seu padrinho, e que minha irmã mais velha leu para nós já logo na primeira noite da sua chegada. O livro chamava-se “O Patinho Feio”, e eu me emocionei tanto, mas tanto, com o sofrimento do pobre Patinho que era Cisne, que acabei a noite aos soluços, dizendo que tinha uma dor indetectável, e com todo o mundo à minha volta me dando chazinhos para que eu melhorasse. Quanta vergonha eu tinha, naquele tempo, de deixar entrever a minha sensibilidade, e o medo que tinha de ser ridicularizada por chorar por causa de um patinho de livro de história! Parece que o coração me dizia que na minha vida adulta teria sérios problemas com tais coisas, me avisava desde criança! Mas foi muito lindo descobrir, naquela noite misteriosa, que um patinho pode virar cisne, e como me lembro da última página daquele livro, com o grande cisne de asas abertas a conquistar a imensidão do espaço, na glória do encontro da sua identidade!

Então pergunto: o que me fez lembrar de todas estas coisas? Ah! Claro, só podia ser o coração! E como ele trouxe todas estas lembranças de volta com nitidez numa fração de segundo, nesta semana, quando encontrei o meu amor parado dentro de um pátio! Vi-o de supetão, assim sem esperar, e ele era todo cinza e prata, e assim macio como o ninho coberto de penas que a nossa pata escondera na ilha, assim altaneiro como os gansos que patrulhavam o terreiro da nossa casa e a Lagoa de Camboriú, assim imenso, capaz de conquistar o espaço com suas asas abertas, como um cisne! Ai, a força que tem o coração! O meu amor estava como numa ilha, naquele pátio, e eu não possuía uma canoa como aquelas inesperadas que apareciam na minha infância, e não podia remar pela Lagoa e chegar até ele – mas como o meu coração se adoçou em ternura porque ele estava lá naquele pátio, cinza e prata, terno e poderoso – que pena que não havia a canoa, que pena! Mas que loucura que foi aquele transporte inesperado para as lembranças de patos, gansos e cisnes que ele me suscitou, e de novo eu fiquei pensando: o que é que a gente faz com um amor assim? Não há o que se fazer além de amá-lo!


* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

Um comentário:

  1. Privilégio ler suas experiências gostosas e entrar nas suas lembranças poéticas. Aos seus olhos e palavras uma infância boa vira uma infância ótima. O defeito da sua sensibilidade infantil é a mágica que a tudo transforma.

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