quarta-feira, 18 de julho de 2012

Quanto tempo é preciso para ser feliz?

Por Mara Narciso

O ano de 2012 está anormal. Não choveu nos meses de chuva, não fez frio no inverno, e a terra tremeu algumas vezes. Tudo tão diferente que me trouxe de volta um ano que se destaca como único entre os muitos que vivi. Foi 2006. Um ano estranho, não do ponto de vista climático, mas de acontecimentos. Eu estava aposentado há tempos. A minha vida tinha parado. O mormaço encobriu meu raciocínio. A esposa, adoentada era recebedora dos meus cuidados, e de minha exclusiva atenção. Os dez filhos criados, cada um ficava em seu lugar. E eu aqui, vivendo do passado, das glórias musicais antigas, dos feitos, sem nenhum plano, sem nada para esperar. Olhando pela vidraça, mirava o asfalto tremendo debaixo do sol. Aqui não tinha clima londrino para um ataque de melancolia, mas o vazio existencial maltratava a minha alma inquieta. Tentava escrever poemas, musicá-los, mas saiam capengas, sem vitalidade, tirados a fórceps. Meus versos estavam moribundos. Uma vida sem ideias nem prazeres.

Com vontade de tomar café, dei um pulo na repartição onde antes trabalhava. Precisava ver gente, respirar ar novo. Sabia que a faxineira de lá vendia a filha numa bandeja. Mas não a conhecia. Quis ver a foto. Maria Isabel tinha 18 anos. Cinquenta menos do que eu. Era uma menina morena que lembrava vagamente uma indiazinha. Olhos amendoados, cabelos lisos, grossos e compridos, magra e de seios pequenos. Estava lá no retrato, e a mãe a mostrava aos homens de certa posição social, para que pudessem se interessar pela filha. Encantei-me, e por que não? Telefonei e conheci Maria Isabel. Era tímida, sem-gracinha, encabulada. Olhou-me encolhida, querendo esconder o rosto nos ombros, entre os cabelos. Eu quis ficar com ela. Não foi paixão, não foi tempestade, foi um leve sopro, um alento para eu viver.

Não foi preciso grande discurso persuasivo. Ela já estava preparada pela mãe para aceitar um homem mais velho que lhe bancasse os estudos. O papel dela era apenas aceitar. Não perdi tempo. Deixei claras as minhas intenções acariciando-lhe o rosto, e quando estivemos a sós, dei-lhe um beijo na boca. Estava selado nosso compromisso de ajuda mútua. Ela me daria estímulo vital, e eu pagaria a sua faculdade. Mesmo sem ser rico, dei-lhe um carrinho e uma quitinete. Os meus filhos tentaram me interditar, e no final entenderam que o que dei foi pouco diante do que recebi.

Nossos encontros eram gostosos, sem sustos nem medos, com respeito, carinho, e atenção. Ela não mostrava pressa. Nisso sei que era aceito. De alguma maneira eu conseguia saciá-la. Percebi estar amando Maria Isabel, quando chorei ao saber que ela se encontrava com outro. Não sou tolo a ponto de acreditar que não tivesse um sócio. Mas lá no íntimo, queria exclusividade. Mesmo de forma ilusória, é gostoso sonhar. Após nossos encontros, mostrava-se satisfeita, só que hoje penso que pode ter sido fingimento, para se ver livre de mim e ficar liberada para o namorado. Mas pouco importa. A menina conseguia representar bem, para o meu equilíbrio. Sim, deixo os pensamentos tristes irem embora. Só eu sei como vivi esse período de luxo em minha vida. O que recebi foi uma energia que me proporcionava tal estado de lucidez que compus o que dizem ter sido minha obra prima: um CD grandioso. As emoções brotaram, as palavras vieram, a musicalidade aflorou apoteótica e todo meu encantamento foi dirigido para o disco e depois para o mundo, pois a obra se tornou conhecida nacionalmente. Eu coloquei os meus neurônios para funcionar. Eu não me embriaguei. Eu explodi. Graças ao caso com Maria Isabel.

Sabia desde o começo que em algum momento a separação aconteceria. Sofri e chorei, exatamente como as mulheres abandonadas fazem. Meu mundo se quebrou e caí no abismo. Não era a primeira vez, pois já tinha caído. Sim, já caí no ridículo, quando ela se negou a ser vista ao meu lado. Porém não há culpas. Não quero fazer defesa de comportamentos e nem de coisa alguma. Eu vivi, e mesmo com os momentos difíceis da ruptura, fui feliz com Maria Isabel. Arrependeria sim, caso não a tivesse conhecido. As melhores lembranças ninguém tira de mim. Estão aqui na minha mente junto com as sensações de pele que ela me proporcionou. Ser feliz não exige a eternidade. O que precisa ser eterna é a lembrança, e a minha é.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade” – blog http://www.teclai.com.br/

8 comentários:

  1. Já falei sobre o texto e ele é lindo.
    Sim, a lembrança é eterna. Sempre será. O amor é isso. Modifica as pessoas. Nos torna melhores.

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  2. Já li o texto pelo email e repito aqui que achei muito bom. Nada é eterno senão as boas lembranças.

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  3. Segundos que sejam, porém eternos.
    Abraços

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  4. É tão bom viajar em boas lembranças. As ruins devem ser relegadas ao esquecimento. Obrigada pelos comentários.

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  5. Belo texto, Mara. E quanta sabedoria nas reflexões deste seu alter ego. Parabéns.

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    1. Uma amiga me contou há tempos um caso no qual eu me baseei para escrever essa história. Acabei resgatando um pouquinho de mim, de coisas maravilhosas e fugazes que vivi, Marcelo. Obrigada por comentar.

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  6. Texto diferente, com algumas nuances peculiares. Que bom ver a diversidade do seu talento.

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    1. Fico muito feliz com a sua análise, Adailton. Muito obrigada!

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