sábado, 23 de junho de 2012


Jornal do caos

* Por Ronaldo Bressane.

Já não sou mais aquele
e ainda não sou outro
Millôr Fernandes

(Lua)

O orelhão da esquina tocou às 4h48, a hora dos suicidas. Um toque só, e parou. Daí que abri meu bloco de notas e comecei a escrever isto – tentar um jornalismo do caos: a notícia, pão de cada dia, sem senso de o que, quem, quando, onde, como e porquê – e, ainda assim, as luzes do meu loft vão ficar sempre acesas, sala, mezanino, cozinha, wc, varanda. Sem acessar os eventos externos, as notícias do mundo me serão, e só porque eu quero, traficadas – isto é, me impedi de saber o que acontece, ou melhor: editei eu mesmo meu caos particular (não será deus o grande editor?). Pra isso, desliguei o celular, cortei a linha telefônica, o interfone, a internet, a tv a cabo, a empregada, a assinatura do jornal, das revistas semanais, das mensais, das importadas, e no fim paguei pra o porteiro jogar no lixo toda a correspondência – a não ser um único envelope diário, onde tem um clipping elaborado por cinco infotraficantes de confiança.

Porque esse vício me cobrava muito alto. Juros sobre juros. É. Hoje, às nove da manhã, enquanto presenciava, por uma fresta nas venezianas, o sol flutuar entre as antenas da avenida Paulista, pensando no que inventar pra cobrir o rombo no cheque especial e nos cartões de crédito – usava o cartão C para pagar o B etc –, senti que minha ração cotidiana de jornal já se atrasava em uma hora. E salivei. No som da sala, Nico chamava as festas de amanhã. Desmaiei. E até agora não senti que precisasse tomar um banho. Sendo que, pela presente, firma-se que comecei este diário às três da tarde. Organizado. Tudo bem – agora pouco, considerei que havia falado de mim demais até, e rasguei umas páginas. Acho que hoje é segunda. Mas pelos sons que vêm da janela parece ser qualquer dia da semana, todo dia é igual nessa maldita cidade encaixotada, caixotes, caixotes, de caixotes de azulejo vagabundo emusguecido fuliginoso frágil é SP... ah, que morra toda, porra.

Daqui por diante, enquanto não parar de tremer, vou dormir com todas as luzes acesas.

Tomando uma pepsi à frente de minhas venezianas, posso ver também uma padaria francesa... Do lado oposto da rua, numa casa térrea marrom-merda, prensada entre prédios de vinte andares, moram um velho, uma velha. Não sei se são irmãos, se ele é pai dela, se ela é amante dele, se algum dia foram casados – o fato é que, pelo modo como saem metódicos depois do almoço pra sacar o movimento dos bares na rua, sem dizer lhufas um ao outro, irmanados aparentemente no poodletoy branco que acariciam no pescoço vez em quando, parecem isolados ali para sempre... Será que ainda se preocupam com a última declaração do presidente, o mais recente escândalo sexual do jogador de futebol ou o decote no vestido da modelo que abalou a festa do Jóquei Clube?

Na dúvida, portanto, caso seja irreversível minha síndrome, criei essa saída de emergência. Instruí cinco figuras a me tratarem com mínimas porções da droga. Elas foram pagas pra recortar 5 notícias ao acaso e me passar todos os dias por debaixo da porta – a idéia é que eu resista a abri-los ao máximo; se conseguir, é a cura. Não foi tão difícil encontrar cinco infotraficantes – todos analfabetos: pouco tempo atrás tinha entrevistado umas empregadas domésticas pra limpar o loft em que rabisco estas (em que rabisco estas palavras só pra afirmar que, é, impresso, eu existo. Vamos ver se este tratamento dá certo... Vai ser foda. Uma leve convulsão, logo depois de almoçar biscoitos – agora sem ver tv – me abriu o supercílio direito, naquela cabeçada nos pedais do piano).

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Abertura de “Jornal do caos”, conto de Céu de Lúcifer [Azougue Editorial, 2003]


*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e do blog coletivo FakerFakir (www.fakerfakir.biz).

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