quinta-feira, 28 de junho de 2012

Córtex


* Por Guilherme Scalzili


Esta noite sonhei com o acidente pela primeira vez. Acordei ofegante, abalada pela súbita impotência dos remédios. Mentalizei o alerta para a enfermagem. Sei que tocou, pude ouvi-lo do quarto. Mas ninguém apareceu até agora, depois que as listras do sol já passearam no teto branco.

O hospital continua mergulhado nessa quietude estranha. As janelas deixaram de ronronar a habitual agitação das ruas lá embaixo. Forçando o olho à esquerda, percebo que o soro acabou. Devo estar imunda, sinto odores sob o lençol. Entrevejo um canto do vidro que me exibe ao corredor. Não há sinal de movimento. Torço apenas para que a cabeça continue assim, com o queixo inclinado, permitindo-me respirar.

Você procurava entre as ferragens, gritando por socorro. Diluindo-se nas luzes enevoadas da ambulância. Então surgiram enfermeiros em debandada. Médicos de máscara. Cientistas falantes montando e regulando equipamentos. Homens elegantes e solenes. Aquele velho de farda que chorou quando me viu. As lembranças ganharam coerência. Estiveram sempre ali, mas não conseguia decifrá-las. Agora percebo como progredimos desde os primeiros experimentos. Não percebi o tempo correr. Pudera.

Concordo, é uma espécie de prisão. E alguém seria realmente livre, encapsulada nesta carcaça inútil? Considerando as circunstâncias, tenho sorte de contribuir para algo importante. Aliás, parece muito, muito importante. Mas ignoro as poucas digressões técnicas. Sei que não esclarecem coisa alguma. Quando ouso perguntar-lhes, quase nem se dão ao luxo de mentir. Tento não atrapalhar, já estorvo o suficiente. Você me conhece. Basta continuarmos unidas, nesse vínculo milagroso. A salvo de controles. Vencendo a distância e o isolamento em que me puseram. É o nosso segredo. É tudo que nos resta.

Eles não sabem, não quis frustrá-los depois de tantas cirurgias, mas continuo vulnerável a sensações físicas. Em mim e nos outros. Soa desagradável? Pois garanto que tem um gosto emocionante de contravenção. É disso que se trata, afinal. Compartilhar estímulos. Fundir-se em outras mentes ativas. Participar de seus sonos inertes. Sorver tormentos e prazeres nos esconderijos mais íntimos, onde pulsam, à espera. Como tumores de possibilidades. Desbravar a matéria desconhecida, idêntica e previsível. Emancipá-la.

Sim, prazeres. Ah, poupe sua mãe de pudores beatos. Faço tudo que me pedem. Ou não? Abro-lhes as imensidões microcósmicas de minhas tempestades nervosas, sem impor obstáculos a essa aventura incerta. Jamais sobreviveria se parecesse inapta ou resistente. Bastar-lhes-ia apertar um botão, ou deixar de acioná-lo. Creia, fizeram isso muitas vezes. Para eles não passo de uma velha fatigada, suspensa na brisa tênue do simulacro vital. Um emaranhado de células. Que eles ainda não conseguiram manter funcionando numa caixa sem desejos ou escrúpulos. Ainda.

Ora. Nada mais inofensivo que o intercâmbio honesto entre pessoas adultas. E conscientes, na medida do possível. Míseras descargas elétricas. Comunhão de impulsos desprovidos de barreiras estéticas, etárias ou sociais. Ali, nos abismos das entropias alucinantes, podemos ser muitos, enormes, ágeis, viris. Podemos esquecer esses membros reduzidos a ossos. Os pudores inúteis. As carecas horrendas pontilhadas de sensores. Vocês, limitados à crosta sensível, não imaginam a plenitude da sintonia entre essências imemoriais. Elaboradas a partir dos mesmos resquícios primitivos, porém minuciosamente variáveis. Assustadoramente complementares.

Diverte-me constatar que demorei anos para mover triviais peças de xadrez, teclas aleatórias, um único polegar mecânico. Arcaicos e desengonçados braços de ferro e fios. É fascinante acompanhar a inescapável obsolescência da tecnologia. De artifícios frágeis, que um dia pareceram definitivos. O pueril ilusionismo virtual. A combustão. Telefones. Mas você é jovem demais para saber. Conhece apenas essa completude automática, acessível ao toque, limpa de papéis, tempestades, inimigos reconhecíveis. Tudo fácil e asseado, longevo e seguro.

Também usufruo uma ilusão de conforto. Apenas durmo. Distraída e aliviada por evasões clandestinas que meus guardiões provavelmente conhecem e toleram. Sobrevivo. Mas não pense que é fácil. Às vezes participo de certezas dolorosas bastante convincentes. E terríveis. Assustadoramente reais. Antes, quando me recuperava do trauma e as conexões ainda pareciam ingovernáveis, gostava daquilo. E, quer saber? Algumas torturas podiam ser libertadoras. Deliciosas. Ah, a adorável intransigência da carne ferida. A indescritível sensação de vitalidade que o suplício proporcionava.

Depois a dor ficou repetitiva. Alienante, como a atrofia. Quase prefiro que me abandonem desperta, angustiada. Cansei da prostração confortável e passiva. Cansei de não sonhar. Precisavam realmente deixar-me tão alheia a tudo? Entendo. São os tais revolucionários. O exército de cérebros interligados ameaçando a civilização que os criou e desenvolveu. Detesto política, estou bem assim. Usem-me como quiserem. Iludam-se. É tarde para retroceder.

Mas… que barulho foi esse? Um tremor surdo. Um baque, um estampido, não sei. Lá fora. Janelas, paredes, teto, vibraram de repente. Veio de baixo. E parou.

Silêncio.

Espero. Reviro os olhos. Da rua chega um clarão vermelho. Não é crepúsculo, se esvai. De novo. A explosão. O quarto lateja por segundos. E agora. Mais próximo. Os suportes de soro caíram. Copos, bandejas. As máquinas, num estrondo. Metais. Estilhaços. Uma confusão de alarmes sonoros, por toda parte. Algo espatifa no corredor.

Percebi um vulto. Uma sombra. Passou rápido, ali. É verdade. Voltou. Parece me observar. Sumiu.

Tudo escuro.

Apagaram-se as luzes do prédio. Os barulhos cessaram. Treva absoluta. Rumores imprecisos. Arranhões sutis, remexendo ao redor. Minha respiração atrapalha. Prendo o ar. Tento ouvir. Nenhum movimento. Noite opressa. Calor. Pulsações aceleradas.

Um estalo.

A porta. Abrem a porta. Há alguém no quarto. Posso ouvir seus passos. Senti-los. Vibram. Cadenciados. Rascam devagar sobre os cacos. Aproximam-se. Ao pé da cama. Ao meu lado. Aqui.

É um travesseiro. Deita seu perfume gelado em meu rosto. Macio. Delicado.

Filha, por favor, continue dormindo.

*Jornalista, advogado, historiador e escritor, autor dos livros “O colar da Carol ta na grama”, “A colina da Providência”, “Pantomima”, “Acrimônia” e “Crisálida”.

Um comentário:

  1. É estranho e ao mesmo tempo fascinante
    as informações que guardamos no cérebro
    algumas doenças por vezes funcionam como uma
    borracha e eis que de repente quando se imagina
    que tudo foi deletado, um cheiro, um gesto, um
    nome ressurge em meio a névoa.
    Abraços Guilherme.

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