quarta-feira, 16 de maio de 2012

A pequeno-burguesa


* Por Marco Albertim


Não é malsã, a pequeno-burguesa. Intui-se como tal – sem fins daninhos – para se prevenir dos riscos da vulgaridade; tanto a de baixa extração quanto a de presunçosa fidalguia. Bem como para escapar ao cerco da ostentação sem rebuços. Como seu ombro fino, que ela esconde sob um véu transparente que deixa entrevê a pele e não se desnuda para o vulgo. Tem uma receita de si mesma, e a expõe com grunhidos de moça que mostra as unhas e as contrai ante o iminente bote de um predador. A bem da justiça, curvamo-nos a seu zelo de manter distantes os grasnidos de dama confessa; com justeza, posto que rebentariam em tumores o seu talhe fino.

Rosa é seu nome, e não se contenta com a redondez da assinatura do notário na certidão que a designa membro da família das rosáceas. Na noite da cerimônia, uma cerimônia meio que funérea, inda que com gabação a quem põe fim a propósitos de morte, deixou um desfalque de seis hastes no ramalhete sobre a mesa. Trouxe-as penteando as corolas da cor de seu vestido amarelo; com a ponta dos dedos magros, sem reclamar do frio àquela altura com sopro rude na maciez das pétalas.

Mostrou-as como presas felizes, reféns de seu culto a retiros de cores.

- Não as ponha no seu quarto de dormir. O cheiro solta gases venenosos – alguém advertiu.

O aviso, diga-se, fora acudido pela lembrança de uma mãe num quarto de hospital, moribunda; mesmo antevendo a morte, ela mandara que tirassem do vaso na parede, três hastes de rosas com corolas sob a imagem de uma santa. Ora... Rosa tem nas mãos um talismã, não está morrendo, inquire à flor sobre a inquietação que os anos infundem nos urdumes.

- Se eu for me preocupar com isso, não saio de casa para não cheirar o gás carbônico do trânsito.

Calou-se o agourento.

Demais, o deputado, no discurso de valoração da vida, enxergara na morte a soma de compaixões por outrem, emprenhando-o; como num transbordo; ele, na silhueta magra coberta por um terno escuro, sob a cabeça recamada de uma musselina branca, sem enxergar o ocaso. Mesmo no ocaso trágico de suicidas palestinos.

O presidente da cerimônia chorara, talvez por medo da morte, por certo por amor à vida. O aplauso interrompera o silêncio de seu discurso. O público, tão mudo quanto ele, deu-se conta de que também poderia purgar-se.

Algum alívio sentiu-se ao fim da cerimônia. Rosa presumiu-o sem se despregar do xale sobre o ombro. Deu a volta em torno do plenário. O presidente, ainda entretido na catarse, não a vira com o braço esticado sobre o ramalhete que acolhera seu choro.

No bar, juntou as hastes numa garrafa pequena de cerveja, verde como os caules; alisou-as como num penteado, entrevendo-as num bibelô de sua mesa em casa.

Súbito, lembrou-se do ar-condicionado; mostrou as estrias das mãos frias. Teve a chance de mostrar-se coquete.

- Vou beber um Domeck. Olhem como estou com frio!

Sem grasnir.

Ouve-se a conversa noutras mesas. Ninguém se põe a espreitar o enigma que há no atalho ao conchego da própria casa, para o culto ao santuário de uma mesa de bar.

Rosa julga que está entre pagãos. A liturgia, tem zelo pela liturgia e se queixa da taça de bojo minúsculo espremendo o conhaque. Distrai-se com a azeitona no palito, mordica-a com receio de mostrar-se voraz. Bebe o conhaque legitimando-o no estrago do frio em seu corpo. Não se rende à indiferença do garçom, e intima-o:

- Traga outro conhaque. Mas com uma taça bojuda!

Ela bebe, tem a impressão de que Edith Piaf está cantando...


*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

Nenhum comentário:

Postar um comentário