quarta-feira, 16 de maio de 2012

Nos grotões e burgos podres


* Por Mara Narciso


Por princípio, as nações evoluídas cuidam da infância e da velhice. O Brasil quer progredir, tanto que é Ordem e Progresso o lema da bandeira brasileira. Inebriados pela visão da festiva classe C, enaltecida pelos meios de comunicação, e bem-vinda ao consumo, os brasileiros em geral fazem de conta que o pior foi vencido. A nova classe C é gente que tem celular, internet, TV de plasma e viaja de avião.

Quando o inesquecível Tancredo Neves referia-se a locais atrasados, de pensamento político retrógrado, os depreciava dizendo tratar-se de grotões e burgos podres. Pois o nosso imenso país, ainda possui tais lugares, classificado assim pelo atraso de sua gente, independente do pensamento político, se é que possam ter esse luxo. Muitos nem imaginam como vivem essas pessoas. Ouvem-se piadas sobre as bolsas dadas a elas pelo Governo, e com deboche se fala em bolsa gás, bolsa táxi e até bolsa picolé. Minha gente – pedindo emprestadas as palavras a Fernando Collor - ainda há um Brasil que mal aparece. Não é um povo escasso, raro e pitoresco, pinçado por Marcelo Canellas, o jornalista da Rede Globo, para fazer reportagens premiadas sobre a Fome e envergonhar o país não. É um mundo verdadeiro, que bate na nossa cara, e como o lixo que bóia nas enchentes, o queremos longe das nossas vistas.

Com a ajuda da Prefeitura de origem, uma mãe consegue uma consulta com especialista na cidade pólo, e traz sua filha. Não sabe dizer o que a menina tem. Pergunta se no papel que trouxe não dizia. É uma mulher sem dentes, de vestimenta pobre, pele escura, cabelos em desalinho, suada e com ar cansado. Chegou a se deitar no sofá da sala de espera, devido ao mal estar dado pelos transtornos da viagem. Tem fala rude, de difícil compreensão. A comunicação é primitiva e dificultosa. É preciso chegar junto, para buscar uma conversa possível. Com um saca-rolhas, vai-se descobrindo o caso. Com três anos a criança, hoje mal completando nove, começou a desenvolver as mamas. A palavra pelo, para denominar pelagem na área genital, era desconhecida da mãe. Mas, enfim, foi possível deduzir que havia um desenvolvimento puberal, e uma menstruação, porém a mãe não sabia quando. Talvez há uns seis meses, mas era apenas uma hipótese. Trouxe a filha porque uma médica disse não ser normal. Será que era? Pelo menos não tinha se repetido.

Examinada, a criança estava bem formada, uma estrangeira dentro de um corpo arredondado de adolescente. Retraída, e muito assustada, possivelmente era a primeira vez que ia a uma cidade maior. Nascida e criada numa zona rural, um tanto afastada de uma pequena cidade sem recursos, a muito custo tinha conseguido chegar com a ajuda do poder público. A menina tinha 26 quilos e media 1,33 m. Era um caso de puberdade precoce, já sem condições de tratamento ideal pelo avançado da situação. O Governo fornece a injeção mensal, para bloquear a puberdade, cujo custo é em torno de R$500,00 por mês, porém até os nove anos de idade. O prazo já estava vencido. Também seria preciso fazer um mínimo de exames para afastar a possibilidade de tumor, embora, pela experiência, deveria ser a puberdade precoce verdadeira, que é o amadurecer antes da época. Os riscos eram todos: infância perdida, possibilidade de abuso sexual e gravidez e finalização do crescimento.

A mãe, com toda a dificuldade de comunicação, falou ter 47 anos, uma dúzia de filhos e não ter renda. Recebe R$125,00 do Governo a título de Bolsa Família. Abaixo da criança presente à consulta, havia outra, de seis anos. O tratamento já estava todo atrasado. Diante do impasse, como ajudar? Como resolver minimamente o problema dessa criança?

Pessoas assim existem mesmo, dentro de um mundo real e injusto. São brasileiros vivendo num estado de penúria inominável, sem acesso a informação ou a mínima condição de sobrevivência, higiene e dignidade. Não é um caso único ou curiosidade capturada no meio do nada. É uma gente com anseios, desejos e sofrimentos. Uma fictícia Bolsa Picolé talvez não vá resolver a situação, mas ainda assim, quem a tiver, que se ofereça para ajudar.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade” – blog http://www.teclai.com.br/

7 comentários:

  1. Pois é, Doutora, esse é o Brasil que nos cabe. Que nos cabe tolerar ou tentar transformar - vai do ânimo e da capacidade de cada um. Difícil é encontrarmos uma "atitude de nação", "um levante coletivo" e, principalmente, a devida vontade política. Muito bom. Um abraço!

    ResponderExcluir
  2. Custa-nos acreditar que isso acontece tão perto de nós. Nas periferias das grandes cidades e na zona rural de alguns municípios do Norte de Minas, também. Muita miséria, mas já foi pior. Precisamos buscar essas ações tão necessárias, Marcelo. Obrigada pela passagem.

    ResponderExcluir
  3. Não é aceitável ao direito e a própria Constituição Federal, o que vem acontecendo, é muito triste!!! Cadê a lei que se deve obedecer, a fim de que se mantenha a ordem e se alcance os fins desejados dos Programas "Bolsas...", que tanto é propagado e criticado?
    Abração!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Os programas assistenciais precisam existir, essa é a questão principal. Trazem votos e distorções, sim, sabemos. É preciso haver leis e mais do que isso, serem respeitadas, e os que as burlarem que paguem por isso. Para que não se tornem esmolas institucionalizadas, outras ações se fazem necessárias para que a dependência do Governo seja temporária. Entram aí a importância da fiscalização da frequência escolar.

      Excluir
  4. Quem sabe o programa "Brasil Carinhoso" lançado no último dia 13, dia das mães, alcance (?) casos como este citado pela querida Doutora...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Parece ser uma ampliação do programa anterior, ou melhor, um aprimoramento de tal programa. Uma menina como a citada no texto poderá se beneficiar disso.

      Excluir
  5. Obrigada a quem leu, e obrigada a quem comentou.

    ResponderExcluir